1995 - 2000 Alexandre Matias


























 
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Isto nao eh um blog. Isto eh um blog.




























Trabalho Sujo
 
Sunday, July 07, 2002  
“Eu sou velho mas gosto de viajar” (Arnaldo Baptista)

4:33 AM

 
CULTURA INÚTIL

Muitos leitores questionam o fato de todo Trabalho Sujo ser escrito assumidamente em primeira pessoa. Pra mim, isto é um ponto central, uma vez que apenas uma pessoa faz esta página. Críticos de música tendem a escrever como se seu texto fosse definitivo, como se estivesse redigindo o texto final da história, quando na verdade o que lemos é apenas a versão dele para o assunto. Não podemos nos iludir: por trás de qualquer texto de análise crítica existe uma pessoa, com seus conceitos, parâmetros e princípios preestabelecidos. Pedir imparcialidade deste profissional é pedir para ser iludido. Por isso, escrevo o que penso. E vocês, leitores, sabem o que eu penso. Sabem que não basta ler que um disco é bom para saber se ele é realmente bom. O importante é você ter um discernimento próprio. O crítico musical tem tempo e disposição - ou pelo menos deveria ter - para ouvir todo tipo de música da área que abrange, tentar ouvir tudo que for possível e passar para os leitores o que ele acha que eles deveriam conhecer. Só este processo de seleção já é pessoal, portanto não se engane da próxima vez que ver algum artista numa capa de revista - eles não estão ali porque merecem, estão porque alguém escolheu colocá-los - e não diversos outros artistas - lá. O crítico musical é como médico - todos parecem apresentar as soluções perfeitas, existem dos mais diversos tipos, muitas vezes eles se contradizem. É preciso que o leitor escolha aquele que ele confia mais. Por isso que comigo não tem hipocrisia: você lê o que eu acho e você sabe disso, ninguém aqui tá querendo te enganar.


4:32 AM

 
CLÁSSICO


O duplo Live 1966: The “Royal Albert Hall” Concert resgata um momento crucial na carreira de Bob Dylan e, conseqüentemente, na história do rock

público aplaude, mas ele não quer aplausos e canta: “Ela tem tudo que precisa/ Ela é uma artista/ Não olha para trás/ Ela tira o escuro da noite/ E pinta o dia de preto”. A voz sai da garganta, passa pelo nariz e forma palavras nos lábios, enquanto os dedos passeiam pelo corpo do violão e a boca procura, vez ou outra, a gaita pendurada no pescoço.

Lá está Bob Dylan, confrontando mais uma vez uma platéia. Violão e gaita, voz e poesia - os olhos e ouvidos da audiência ouvindo o artista que escolheram como símbolo. Filho primogênito da geração beat, ele abraçou a música popular como expressão máxima da cultura humana. Queria explicar o povo através de sua própria arte, provar que o que há de melhor na humanidade é traduzido nas palavras de gente comum. Cantava os Estados Unidos que trabalhava em minas de carvão, em bares de beira de estrada, que sabia que o erro era tão provável quanto o acerto.

Repudiava o que o capitalismo que automatizava as pessoas à medida em que deixava a vida mais prática e fácil. Assim fazia porque sabia que a vida não poderia ser fácil. As pessoas crescem através de seus erros, o ser humano não poderia ser uma criança mimada com tudo à sua disposição. Por isso, pegou seu violão e cantou a versão da história que passeava escondida por trás das ondas de rádio e TV. Convergendo o artista visceral que canta músicas que o tempo lhe ensinou e o poeta pós-moderno que criava metáforas usando o imaginário de seu tempo, mostrando que a poesia das ruas era a verdadeira arte, não aquela que freqüentava museus e bibliotecas. Buscava a história oral, não a escrita.

E assim foi acolhido pela comunidade folk. Um jovem talento que cantava a realidade como alternativa à tola fantasia que pintavam como vida real. Artista é aquele que ergue uma casa e cantarola o que sua cabeça pensa no momento em que o cimento e o barro crescem na vertical. Arte é feita sem pensar, sai do coração para perder-se no vento, não precisa ser registrada e sim sentida.

Crescia a cada canção, passando de prodígio a gênio, de novidade a guru. Logo, Bob Dylan era o centro do movimento folk, um grupo de artistas que pregava a volta às raízes como contestação política. E à medida que crescia, percebia que algo estava errado - e não gostava daquilo. Sentia que aos poucos se tornava exatamente aquilo que não queria ser: um ícone, algo a ser apreciado, um líder a ser seguido. Seu rosto estampava cartazes como o símbolo de uma mudança, uma mudança que mudava cada vez menos. Queriam tê-lo, seu autógrafo, sua presença, sua voz, sua mente e mesmo mudando suas canções à medida que cantava, se tornava algo estabelecido, conformado e - de seu ponto de vista - previsível.

Como sempre, quis mudar. Entrou no estúdio em 1965 e em três dias gravou Bringing it All Back Home. Um lado do disco, acústico, trazia um poeta cada vez mais difícil de ser entendido. Suas palavras não queriam clareza, criando imagens estranhas a seu público fiel. Não falava mais de gente comum, cantava motocicletas transformadas em madonas, anjos caubóis cavalgando nuvens de quatro patas, colocava contos de fada, Hollywood, lendas, Shakespeare, a Bíblia, música clássica, poetas, mitologia grega, personagens da história e outros nomes que formavam o imaginário moderno numa nova poesia, colando imagens para criar novas sensações.

Do outro lado, uma banda elétrica ajudava-o a criar um novo som. O melhor exemplo era Subterranean Homesick Blues, em que cuspia sobre uma base barulhenta palavras de ordem diversas, constrangendo seu público original à medida em que seduzia a platéia rock. Pois havia percebido que o rock era a cultura popular daquele tempo, jovens criando sua própria história como alternativa àquela que queriam lhes impor.

No mesmo ano, subia no palco do festival de música folk de Newport. Um festival que contava com velhos bluesmen, novos talentos folk, caipiras tornados modernos pelo simples fato de serem caipiras. Dylan fecharia o festival e sua apresentação vinha junto da expectativa de uma apresentação memorável. E realmente foi. Mas não a coroação dos valores aclamados naquela noite. Ao lado da Butterfield Blues Band, subiu com instrumentos elétricos e tocou no último volume, para horror da platéia. Jesus Cristo se tornava o demônio e ria na cara de todos que conseguira enganar. Por três canções, foi vaiado com vontade até sair do palco inconformado. Mas satisfeito: sabia o que queria fazer. Dar o público o que ele queria não era arte, era comércio. E o público se tornou algo a ser provocado e os shows confrontos históricos.

Ao final daquele ano, lançou Highway 61 Revisited, que só confirmava o que o segundo lado de Bringing... e a apresentação no festival de Newport pareciam supor. Um disco elétrico, pesado e antifolk. Tudo o que seu público tradicional odiava, lançando-o às paradas de sucesso. A turnê deste disco se tornaria um campo de batalha entre duas forças primordiais. De um lado, o artista, sendo ele mesmo, mesmo que caindo em contradição. Do outro, o público querendo que o artista fosse aquilo que ele afirmava que era em seus discos.

Nos Estados Unidos e Canadá, onde a primeira parte da turnê aconteceu, Dylan encontrava seu novo público, adolescentes saindo da adolescência, querendo experiências mais “sérias” do que o simples primitivismo dançante do rock, procurando expandir suas mentes e traçando os primeiros esboços do que se tornaria, mais tarde, a contracultura. O público folk tradicional permaneceu nos botecos à meia-luz, maldizendo o novo rumo do ex-líder como quem pragueja contra um traidor e não foi assistir seu sonho se vender aos vilões da história.

Mas na Inglaterra, as coisas foram bem diferentes. Quem gostava de rock naquele ano estava ocupado demais com os novos discos dos Beatles e dos Stones, descobrindo bandas novas como Who e Kinks - não tinha tempo para um velho poeta de 26 anos que descia de seu pedestal para atrair novos públicos. Quem lotou teatros e casas de show atrás de Dylan eram seus antigos fãs, querendo ouvir clássicos que o estabeleceram como mito e ver, com os próprios, olhos a nova fase do compositor. Só que grande parte da platéia não estava receptiva em relação a esta nova fase - queria apenas assistir à traição de perto e mostrar o quanto estava insatisfeita com tudo aquilo.

O problema maior era a segunda parte do show, quando, recolhidos o violão e o banquinho, amplificadores e uma bateria surgiam frente ao palco para desconforto da audiência. Era um palco de rock e saber que Dylan pisaria e cantaria naquele lugar causava náusea para os mais ortodoxos. A reação natural era a vaia. Quando ele tinha sorte.

Até que chegamos ao dia 17 de fevereiro de 1966. No palco do Free Trade Hall, em Manchester, o jovem judeu - parecendo velho de tanto que parece conhecer - entra, senta no banco, apóia o violão no joelho, ajeita a gaita no pescoço, destorce a roupa torcida pelo instrumento e, sob uma salva de palmas, após rastejar alguns acordes tímidos ao violão, começa a cantar She Belongs to Me.

Comporta-se passivamente, dando as canções do jeito que o público quer. As letras são as mesmas do encarte, os arranjos seguem os originais, os solos de gaita são velhos conhecidos. 4th Time Around, Visions of Johanna, It’s All Over Now Baby Blue, Desolation Row, Just Like a Woman, Mr. Tamborine Man, - canções que passam longe dos panfletos líricos que entregava na esquina do quarteirão da década. Mas mesmo assim, mesmo cantando sobre trágicas separações ou parábolas que não parecem ser sentido, engana aos poucos o público por quase uma hora. Como se, na última hora, desistisse da eletricidade e voltasse, subitamente, a ser quem havia sido.

Claro que não iria fazer isso. Como canta na primeira música do show, num verso batizou o lendário documentário feito por D.A. Pennebaker sobre esta turnê à Inglaterra (Don’t Look Back), o artista não olha pra trás. Não se arrepende ou se conforma, simplesmente esquece tudo que foi feito no passado porque, como a própria palavra diz, aquilo foi passado, ultrapassado. Recorrer à nostalgia ou tentar consertar erros que a imaturidade cunhou não é tarefa do artista, cuja única função é expressar-se como ele se sente no exato momento em que tem vontade, sem pensar em causas ou conseqüências.

E o som de guitarras afinando e microfones sendo testados, entregam a banda de cinco caras (com Dylan em primeiro plano) em cima do palco. Depois que o guitarrista Robbie Robertson encontra o riff que segura Tell Me Momma, a banda espera o vocalista (agora de pé, com uma guitarra pendurada no pescoço) cantar o 1-2-3-4 antes de desmoronar sobre o público. O barulho é ensurdecedor, violento e claro - é uma banda de rock botando as entranhas pra fora, à medida que a voz anasalada de Dylan se desprende da garganta, um berro cru que arranca todo o papel de parede das canções, revelando a crueza que a acústica fingia não existir.

O público reage com entusiasmo, mas é possível ouvir os cochichos na platéia, cochichos que viram risos depois que Bob apresenta a próxima música. “Esta música chama-se I Don’t Believe You, ela era de outro jeito, agora ela é assim” e tasca I Don’t Believe (She Acts Like We Never Have Met) com força, rugindo as palavras enquanto não as completa, deixando o grito tomar conta do som e transformá-las num som solto no espaço. Guitarra, teclado (um teclado cavernoso, um Hammond do inferno, conduzido por Garth Hudson), piano (de responsabilidade de Richard Manuel) e gaita entram nos espaços deixados pelos berros da voz.

Ao fim de I Don’t Believe, os instrumentos voltam a ser afinados e o público já não aplaude do mesmo jeito. Os comentários entre a audiência já não sussurros, algumas vozes se extendem. E, ao ensaiar a introdução da gaita para Baby Let Me Follow You Down, Dylan é interrompido por uma salva de palmas mecânica, contando tempos, feita para irritar o cantor. Ele volta à mesma frase musical, olha por cima até achar os olhos de Robbie Robertson que entende a mensagem e passa para o resto da banda, que cala o público com uma ferocidade ainda maior que a platéia tentava passar. Aos poucos, assistimos a um showzaço de rock, com Dylan, Robbie, Richard e Garth domando o cavalgar pesado da cozinha do baixista Rick Danko e do baterista Tony Glover.

Robbie inicia o riff de Just Like Tom Thumb’s Blues, premeditando a reação negativa da platéia e Dylan acerta o calcanhar três vezes no chão do palco para avisar à banda que a música começou. Novamente, Hammond e guitarra dominam o segundo plano, deixando a voz de Dylan cada vez mais livre para berrar as letras que o público queria ouvir cantadas ao violão. “Mas logo cheguei à fase pesada/ Todo mundo disse que estava comigo/ Quando o jogo ficou difícil/ Mas a piada era comigo/ E ninguém estava lá para dizer que era sequer um blefe/ Vou voltar pra Nova Iorque/ Acho que já vi demais”. Ele canta sobre o que está acontecendo ali e sabe disso.

Até que anuncia Leonard-Skin Pill-Box Hat e o público está enfurecido, fazendo piadas entre si, aplaudindo os xingamentos dos outros, até voltar a bater palmas em uníssono, em protesto. Instrumentos afinados, calcanhar na madeira do palco e o bluesão arrastado até então inédito (só veria a luz do dia no básico Blonde on Blonde, que seria lançado no fim daquele ano. O barulho que vem do palco é tão sólido e alto que qualquer som que poderia vir do público some na gravação. E como o público xingava um som tão perfeito, tão preciso e feito com tanta vontade como aquele? Queriam uma estátua pro artista e não o próprio.

Até que ele revida, balbuciando algo ininteligível, colando palavras, umas nas outras, até o público ficar quieto e tentar entender o que ele quer dizer. E ele continua falando e falando, como se estivesse falando algo, até que a platéia se aquieta e ele fala a única coisa que dá pra entender: “...Se pelo menos vocês não aplaudissem com tanta força”.

Entra One Too Many Mornings e o clima do show vai ficando mais tenso, à medida em que as canções ficam lentas. “É um sentimento incansável e faminto/ Que não quer bem a ninguém/ Mesmo com tudo que estou dizendo/ Você poderia dizer melhor/ Você tem razão do seu lado/ E eu tenho do meu”. E logo caímos em Ballad of a Thin Man, lenta, assustadora e sóbria, em que o vocal some por trás da quantidade de som. O refrão acerta o público como um murro na cara - “Algo está acontecendo/ Mas você não sabe o quê/ Sabe, Mr. Jones?”.

Foi a gota d’água. Depois de provocar o público por mais de 40 minutos e olhar nos olhos de cada “Mr. Jones” na platéia, ela recebe a próxima música muda. Até que algum maluco levanta-se e grita, com toda força: “JUDAS!”. A platéia ri, Dylan olha pra baixo, e cospe no microfone: “Eu não acredito em você, você mente”, enquanto vira para a banda e sentencia “play fucking loud” (“toquem alto prac*”), antes de entrar na versão mais matadora que a história já ouviu para Like a Rolling Stone.

Tudo isso fazia parte de um dos discos piratas mais conhecidos da história, Live at Royal Albert Hall (mesmo sendo do show em Manchester) que a gravadora Sony lançou em CD como Live 1966: The “Royal Albert Hall” Concert. Um disco duplo que talvez seja o documento mais importante da história de Dylan, ao lado das infames Basement Tapes. Portanto, um dos discos mais importantes da história do rock. Vale cada centavo investido. Aliás, vale bem mais. Um clássico.



QUEM É BOB DYLAN?

Marcelo Nova, especial para o Trabalho Sujo (*)

Fazendo o check out às 4h30 da manhã, caído num sofá de napa num lobby de hotel vagabundo, numa cidade no meio do nada, vejo Natalie, um pequeno anjo magro, aproximadamente 14 anos, rosto talhado e olhos incisivos, que ao invés de dormir na presumível segurança e conforto do seu lar, mente para os pais a fim de estar na companhia de integrantes de uma banda de rock’n’roll.

Ao ver o CD Infidels nas minhas mãos, ela dispara: “Marceleza, quem é Bob Dylan?”. Imediatamente alguém grita: “Todos pro ônibus!”. E eu tenho tempo apenas dizer: “É o melhor, o melhor de todos”. Já esparramado na poltrona, ligo o walkman e coloco meus óculos escuros para pode ver melhor o nascer do sol. E quando ele surge terrível, cego, indiferente como somente deuses sabem ser, a pergunta reverbera e se multiplica nos meus ouvidos. Quem é Bob Dylan? O que ele fez? O que está fazendo agora?

Penso na enorme dimensão do seu trabalho, assim como na inequívoca qualidade (a quantidade não seria tão significativa, se não fosse impregnada de tanto talento). Duvido que existam muitos ouvintes, ou fãs, ou críticos, que além do contato tenham tido intimidade com a totalidade do trabalho de Dylan. Dedicar o tempo necessário para cada fase, para cada rima, para cada solo de cada canção dos seus hoje 37 discos “oficiais” seria uma tarefa para uma vida inteira. E, mesmo após o lançamento de Biograph e Bootlegs Series Vol. 1-3, caixas contendo centenas de outras não lançadas, extraídas das sessões de Bob Dylan de 1961 até hoje e que circulam (disputadas a tapa por colecionadores) no mercado negro.

Milhares de livros já foram escritos sobre ele, que também escreveu o seu, Tarantula, aos 23 anos. Fez filmes, desenhos e pinturas, alguns exibidos em público, outros ainda não. Mas acima de tudo estão as apresentações ao vivo. Dylan e seu “torrencial fluxo de trabalho” (a expressão é de Roland Penrose, referindo-se a Picasso) têm através dos anos deixado o público impactado e atônito.

Lembro-me de duas apresentações realizadas em agosto de 91, no Palace, em São Paulo, quando ele foi massacrado por críticos que não conseguiam identificar exatamente quais canções ele desfiava, alterando melodias e cuspindo palavras. Agindo assim, Dylan tirou-lhes o ponto de referência e expôs-lhes verdadeiras, porém incomuns, facetas da arte.

A música, o ritmo e o drama que envolvem uma performance se desenvolvem num momento específico no tempo. É apresentada do ponto de vista do artista, para ser compartilhada no mesmo instante em que é criada. Mas os críticos, acostumados com artistas menores cuja única preocupação é agradar a qualquer preço - mesmo que isso signifique padronizar e banalizar seus próprios trabalhos -, não souberam como classificar Bob Dylan. Imersos há muito tempo no oceano da mediocridade, esqueceram que a arte que não destrói o convencional, que não contesta o que a maioria acredita, e não sugere outras hipóteses da vida, é apenas melodrama ou mero exercício de boas intenções.

Sem tentar estabelecer contato com o público que não fosse através de sua própria obra, Dylan não dirigiu sua palavra nos intervalos das canções, nem esboçou estímulos físicos, tais como gestos ou mesmo palmas para conseguir a tão almejada interação artista-platéia. No final da apresentação, disse apenas “merci, merci...” e as luzes se apagaram enquanto ele voltava para o escuro dos bastidores. Quem é esse man in a long black coat, o garoto que fugiu de casa like a rolling stone? O primeiro punk, aquele que inseriu não apenas o vigor poético, mas a densidade emocional e guitarras elétricas no folk dos anos 60.

O pacifista inquisidor, cujas respostas ainda são hoje sopradas pelo vento. O soldado que desejou a morte dos masters of war. O cristão que bateu na porta do céu e foi perdoado por Jesus num slow train coming. O errante handy dandy ainda hoje em busca de dignidade sob o sol vermelho. O mesmo sol que queimava o meu rosto através da janela do ônibus e que me trazia a lembrança da pergunta da pequena Natalie. Quem é Bob Dylan? Como posso lhe dar a resposta exata, se ele nem mesmo se chama Bob Dylan? Nesse momento, uma canção chamada I and I vem até os meus ouvidos, via walkman: “Eu já fiz sapatos para todos, inclusive para você e no entanto continuo descalço”.

* Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, é Dylanmaníaco de carteirinha





ENTREVISTA: BOB DYLAN

Não, o Trabalho Sujo não entrevistou Bob Dylan. Muito menos em 1966. A vítima do cantor é o radialista Klaus Burling, que tentou entrevistá-lo no dia 28 de abril daquele ano, quando Dylan pousou na Suécia. Digo “vítima” porque do mesmo jeito que gostava de confundir seu público, o cantor brincava de atazanar qualquer tentativa de entrevista na época. Sem querer explicar-se, confundia ainda mais o interlocutor. E, mesmo assim, se explicava. Veja se você entende, nesta entrevista cedida pela gravadora Sony.

É muito bom vê-lo em Estocolmo, Bob Dylan, e eu queria saber que agora que você está aqui se você poderia explicar suas canções e você mesmo. O que você pensa da canção de protesto?
Bob Dylan - Um...Er...Deus... Não, eu não vou ficar sentado aqui e fazer isso. Estive acordado à noite toda, tomei algumas pílulas, comi uma comida horrível, li todos os tipos de coisas erradas; estou pra correr num carro a 150 por hora e não vamos sentar aqui e falar sobre mim como um compositor de protesto ou qualquer coisa do tipo.

As primeiras coisas que te deram fama, como The Times They Are A-Changin’ na Inglaterra, são músicas de protesto, não?
Dylan - Oh, meu Deus. Há quanto tempo foi isso?

Há um ano.
Dylan - Certo, bem, quero dizer... Um ano atrás. Eu não quero ser mau ou qualquer coisa do tipo, mas eu gostaria de ser um mentiroso ou um tolo pra continuar nesse negócio. Quero dizer, eu não vou ajudar se você pensa há um ano atrás, sabe?

Não, mas agora você mudou para Subterranean Homesick Blues com guitarra elétrica e outras coisas. Alguma razão especial?
Dylan - Não.

Não?
Dylan - Não.

Como você se chama? Um poeta? Um cantor? Ou você escreve poemas e depois os musica?
Dylan - Não sei. É tão besta. Quero dizer, você perguntaria essas perguntas a um carpinteiro? A um encanador?

Não seria tão interessante.
Dylan - Eu acho que poderia ser, quero dizer, é interessante pra mim, como deveria ser interessante pra você.

Enquanto um apresentador de programa de rádio, não.
Dylan - O que você acha que Mozart diria se você viesse perguntasse esse tipo de perguntas. Que tipos de perguntas você perguntaria a Mozart? Diga-me, Mr. Mozart, er...

Bem, pra começo de conversa eu não o entrevistaria.
Dylan - Bem, então por que você veio a mim?

Porque estou interessado nos seus discos e o público sueco também.
Dylan - Eu também estou interessado nas audiências suecas e nas pessoas suecas e todas essas coisas, mas eu tenho certeza que eles não querem saber essas coisas idiotas, você sabe.

Não, bem, eles lêm um monte de coisas idiotas sobre você nos jornais e eu acho que você poderia ser mais direto aqui.
Dylan - Não posso, eu acho que eles não precisam disso. Eu acredito que eles já saibam. Você não conhece os suecos? Eles têm de ser ditos, não explicados. Você deveria saber de tudo isso. Você não pode explicar pros suecos algo que já se explica. Os suecos são mais espertos que isso.

Você acha?
Dylan - Claro.

Você conhece muitos suecos?
Dylan - Conheço vários e eu também sou um sueco.

Claro.
Dylan - Na verdade, eu venho de um lugar não muito longe daqui, meu amigo.

Vamos tentar ouvir uma canção, então?
Dylan - Pode tentar.

Certo. Qual você sugeriria?
Dylan - Escolha a que você quiser, qualquer uma. Você percebe que eu não estou sendo mau. Estou querendo apenas esclarecer as coisas, você percebe?

Sim e é por isso que eu pedi pra você e você teve uma chance pra fazer isso sozinho.
Dylan - Eu não quero fazer isso.

OK.
Dylan - Não quero fazer nada sozinho.

Sua música está vendendo bem nos EUA. Como se sente em relação a isso?
Dylan - É horrível, porque é uma canção de protesto. As pessoas não deveriam ouvir canções de protesto.

Muitas pessoas compram o disco e ouvem-a no rádio. Então muita gente entende a mensagem.
Dylan - Yeah, eles entendem. Fico feliz que eles entendam. É um bom disco, não?

Como você se sente ao ganhar muito dinheiro se você não está preocupado realmente com isso?
Dylan - Eu gosto de ganhar muito dinheiro.

No começo da sua carreira você não tinha dinheiro e agora você tem bastante. O que você faz com ele?
Dylan - Nada.

Não se preocupa?
Dylan - Não. Outra pessoa cuida disso pra mim. Ainda faço as mesmas coisas.

Quando você escreve uma música, escreve a letra ou põe a música antes?
Dylan - Escrevo tudo, música e letra.

Ao mesmo tempo?
Dylan - A melodia não tem importância, na verdade. Sai naturalmente.

No começo, outros artistas gravavam suas músicas e fizeram sucesso. Como você se sente em relação a isso?
Dylan - Bem, eu não sinto nada. Fico feliz.

Você gosta de ser reconhecido mais como um compositor do que como um cantor?
Dylan - Er, sim, pois é como se fosse tudo de uma vez. Eu não tenho nenhum outro interesse. Eu tinha interesse, aos 13, 14, 15 anos de ser um astro famoso, essas coisas, mas eu estou no palco e seguindo shows ambulantes desde que eu tenho 10 anos. Fazem 15 anos que eu faço o que faço. Eu sei o que estou fazendo melhor que todo mundo.

E o que você quer fazer hoje?
Dylan - Nada.

Nada?
Dylan - Não.

Você gosta de se apresentar? De viajar?
Dylan - Sim, eu gosto. Eu não ligo de viajar, também.

E de gravar?
Dylan - Gosto de gravar.

Você tem uma banda agora, coisa que não tinha no começo.
Dylan - Eu tinha uma banda bem no começo, mas você tem que entender que eu venho dos Estados Unidos. Eu não sei se você sabe como são os Estados Unidos. Não tem nada a ver com a Inglaterra. As pessoas que têm a minha idade, 25, 26 anos, cresceram tocando rock’n’roll.

E você faz isso?
Dylan - Sim, porque é o único tipo de música que se ouve. Todo mundo já fez isso porque tudo que você ouve é rock’n’roll, country e rhythm’n’blues. Em uma certa época toda esta música foi invadida pelo som inofensivo de Frankie Avalon, Fabian, essas coisas. Não que seja ruim ou coisa do tipo, mas não era o tipo de coisa que as pessoas poderiam se espelhar. Então veio a música folk e foi um subsituto por um tempo. Mas só um substituto. Agora é diferente, devido ao fator inglês e o que os ingleses fizeram foi provar que dava pra fazer dinheiro tocando a mesma velha música que nós tocávamos. Isso é verdade, não é mentira, mas os ingleses não tocam rock’n’roll.

O que você acha dos Beatles?
Dylan - Os Beatles são ótimos, mas eles não fazem rock’n’roll.

Você os conhece?
Dylan - Sim, eu conheço os Beatles.

E eles não tocam rock’n’roll?
Dylan - Não, não tocam. Rock’n’roll são quatro batidas, uma extensão do blues de 12 compassos. E rock’n’roll é música de moleque branco de 17 anos. Você sabe, é uma tentativa de forjar sexo.

Como você chama seu estilo, então?
Dylan - Bem, como ninguém toca ou canta como eu, eu não sei.

Como você batizaria sua música?
Dylan - Música matemática.

4:31 AM

 
COMO SE FOSSE 1999

Beck transforma-se numa festa sem fim e não quer ver ninguém parado em seu novo disco, o surpreendente Midnite Vultures

Estamos na noite anterior da virada para o ano 2000 e não há como não pensar em teorias apocalípticas ou bug do milênio. É a última noite de um número que acompanhou toda nossa existência (o "19" antes de todos os anos deste século) desaparece de vez e ver todos aqueles noves se transformarem num número tão perfeito quanto "2000" - transformado em ícone por nossa cultura milenarista - só pode ser motivo para farra. "Vamos festejar hoje à noite como se fosse 1999" cantava Prince em 1984, prevendo a festa do maior reveillón de todos os tempos, transformando seu bacanal ambulante numa utopia com data marcada.

Mas a trilha sonora desta noite vai ficar com outro baixinho. Prometendo a continuação de seu Odelay, de 1996, como uma forma de manter a atenção sobre ele, ele já nos havia surpreendido com o belo e sólido Mutations, do ano passado. Este ano, mais uma vez, ele opta pelo inesperado e - como todo artista deveria ser - nos choca mais uma vez. O disco deste ano chama-se Midnite Vultures (Universal) e não espera a noite do fim de ano para acender o pavio da festa.

Aqui ele deixa-se guiar pelos próprios instintos e estes o fazem dançar. "Você não está ouvindo estes tambores de cavalaria/ Chacoalhando seu equilíbrio?", ele canta logo na primeira frase de seu novo disco. E como a dança é só uma referência em relação a outro assunto ("a manifestação vertical de um desejo horizontal", já disse alguém), Beck deixa o sexo tomar conta do novo disco, sendo descaradamente sacana - seja nas letras ou na música. Ele não faz diferença, perseguindo o excesso onde ele possa estar: no gangsta rap, no R&B ou na discoteca, o cantor só quer te colocar pra se mexer - e consegue, o desgraçado.

Mais do que isso. Ele consegue nos colocar na mesma atmosfera que ele, qualidade que poucos artistas têm. No caso de Midnite Vultures, Beck nos coloca numa festa com cores tão berrantes quanto as que urram em seu encarte, regada a bebidas servidas em taças de vários andares e iluminada com globos espelhados. No som, um funk bombando baixos estalados e efeitos de videogame, e no centro de tudo, ele comanda a festa com um misto de dança do robô com charm. "Eu só quero ver você dançar", ele ri enquanto canta, transformando quase toda subcultura dos anos 90 - do garage rock ao R&B, passando por raves, guetos e boates - na mesma festa de fim de ano. Todo mundo está comemorando a possibilidade de sair à noite e dormir com quem quiser, a mesma espécie de decadência do Império Romano que o período da discoteca flertou no fim dos anos 70.

Para insistir na pluralidade desta festa, ele busca referências sonoras das mais diversas. Soul pesado, Prince, vocoder, metais, country, R&B, Kraftwerk, Roger & Zapp, guitarras wah-wah, funk, gangsta rap, rock, Kool & the Gang, rock sulista, electro, P-Funk, charm... Uma festa que começou no final dos anos 70 vem se arrastando pela música noturna urbana do planeta e encontra em Midnite Vultures a desculpa perfeita para revisitar-se. Sem samplers e com basicamente a mesma banda que o acompanhou em Mutations (o baixista Justin Meldal Johnson, o baterista Joey Waronker e o tecladista Roger Joseph Manning Jr., mais o guitarrista Smokey Hermel e um naipe de metais), ele transforma seu novo disco no melhor retrato deste fim de século.

"Quero desafiar a lógica de todas as leis sexuais", ameaça em Sexx Laws e aos poucos vai revelando uma sexualidade improvável, aquela sensualidade brega que consegue unir George Michael, Barry White e John Lee Hooker sob o mesmo teto. Sem medo de soar cafona, como toda boa cantada suja, Beck despe-se do intelectualismo e deixa o instinto tomar conta. "Te darei uma fruta que não existe/ Deixar grafite onde você nunca foi beijada/ Lavar sua roupa suja/ Massagear sua alma", promete na sinuosa Nicotice & Gravy. A irresistível Mixed Bizness nos convida para uma noitada sem fim cuja personagem principal "pode realmente me fazer" e faz tanto os b-boys quanto as lésbicas gritarem.

Get Real Paid muda o foco que Afrika Bambaataa cogitou para o Kraftwerk do funk para o soul. Sussurrada (com Beck fazendo tanto os vocais agudos quanto graves), ela usa os blips e blops dos alemães para construir um groove lento e sofisticado que "gosta de viajar em aviões executivos" e de "sentar-se para ser bem pago". Hollywood Freaks, a primeira colaboração com os Dust Brothers no disco, é um bizarro gangsta rap, em que Beck ousa seus melhores vocais. "Pegue com jeito se quiser um pedaço", range entre os dentes, com desdém. Não é nem paródia nem homenagem - Beck está só cantando seu próprio tempo: "Eu não tenho nada pra fazer/ Nenhum lugar pra ir/ Eu te digo o que quer/ Se quiser saber/ Lençóis de seda/ Óleos tropicais/ Aumente a temperatura/ Até a piscina borbulhar".

A sacana Peaches & Cream, a quadrada Broken Train e o boogie sulista de Milk & Honey (com a presença ilustre do ex-Smiths Johnny Marr) são descendentes de Odelay, mesclando referências de rock tradicional com o espírito soul Prince que invade todo Midnite Vultures. Beautiful Way aproveita-se no fim melancólico de Milk & Honey para desenterrar pela única vez o lado Mutations do compositor, num belo dueto com Beth Orton, a cantora folk predileta dos Chemical Brothers. Pressure Zone volta-se de novo ao rock cubista de Odelay, preparando-se para o gran finale: Debra é uma baladaça soul que arrasta-se enquanto Beck geme em falsete - e, pior, convence! - que "quer ficar contigo e com sua irmã". É a segunda parceria com os Dust Brothers neste disco e é uma jam session à moda antiga, com todos instrumentistas solando em seu canto, deixando espaço para que o vocalista dê seu show. Na metade da canção, Beck está conversando com a voz grave e as referências vão de Isaac Hayes a R. Kelly, passando por Marvin Gaye e Michael Jackson. Aqui Beck é genial e não é por nenhuma de suas qualidades de sempre, deixando o instinto sair, ele se entrega de corpo e alma, jogando toda ironia no ralo.

Esta é a lição de Midnite Vultures. Em seu novo disco, Beck dispensa a ironia com um toque sutil e opta pela farra como nova inteligência. Sem meios-termos, ele transforma a celebração e o sexo numa espécie de criatividade social, em que é preciso apenas dançar no ritmo para fazer parte. Abrindo a festa para todos, ele mais uma vez vai de encontro à previsibilidade e, como todo bom artista deveria ser, surpreende com estilo. "Há tanto o que fazer antes de morrer", ele canta como um conselho, uma filosofia de vida e uma ordem. Não há como contrariá-lo.

4:31 AM

 
AMÁLGAMA GROOVE

Quem pousou os ouvidos no disco de estréia do Herbaliser, o excelente Blow Your Headphones, de 1997, sabia que estava ouvindo uma grande banda nascer. Comandada pelo produtor e baixista Jake Wherry e pelo DJ Ollie Teeba, o duo casava grooves de procedências diversas para criar um hip hop instrumental precioso, fazendo com que obedecêssemos a ordem do título (Exploda Seus Fones) com o maior prazer.

O segundo disco do grupo prometia a partir do primeiro, mas ninguém esperava tanto. Com Very Mercenary (Ninja Tune/Subsolo), Jake e Ollie expandem seus horizontes musicais com talento de tirar o fôlego. Abraçando as trilhas sonoras funk e soul dos anos 70 como base, eles entram neste mar de groove que aos poucos vai se tornando tendência mundial. Como o Red Snapper, o Nightmares on Wax, Thievery Corporation, DJ Shadow, entre outros, o Herbaliser também reza numa bíblia chamada Blue Lines (o clássico do Massive Attack) e nos coloca dentro de um hipnótico amálgama de soul, reggae, funk, hip hop e jazz.

Temos em mãos um disco que sua grooves como sua sobrevivência dependesse disso. Desintoxicando-se à medida que afunda-se no peso soturno de um suíngue classudo, a dupla é claramente influenciada por sua atual formação de palco (que inclui um tecladista, um quarteto de sopros, um baterista e um percussionista). Quase sem guitarras e com poucos vocais, Very Mercenary pinta um cenário ao mesmo tempo romântico e ameaçador: um beco escuro onde a música vibra através das paredes. Como um filme sem personagens, o segundo CD do Herbaliser é uma paisagem sonora que pode ser preenchida das mais diversas formas - o importante é atravessá-la. E uma vez que passamos por lá, não queremos sair.




ENTREVISTA: OLLIE TEEBA (HERBALISER)

Trabalho Sujo - É impressionante a mudança de vocês do disco passado para o novo. Houve algum fator Ollie Teeba - decisivo para esta mudança ou foi só evolução musical mesmo?
Isso deve-se a quantidade de shows que estamos fazendo. E também por causa do formato dos shows. Agora somos uma banda com sete ou oito músicos, tocamos quase tudo ao vivo: bateria, teclados, percussões. Fizemos 210 shows desde que começamos, 110 só este ano. E conhecemos alguns MCs, que nos ajudaram a desenvolver nosso estilo a partir de do Blow Your Headphones.

Trabalho Sujo - O som parece mais orgânico.
Ollie - Sim. Ele não é tão estranho, tão escuro, procuramos soar mais funk e jazz... Procuramos alguns sons que não estávamos acostumados e deixamos tudo um pouco mais melódico.

Trabalho Sujo - Você falou da presença dos MCs ajudarem vocês a desenvolverem este novo som. Mas mesmo sem MCs vocês soam como uma espécie bem particular de hip hop instrumental.
Ollie - É difícil se expressar usando apenas samples. Por isso nos dedicamos mais ao trabalho com outros músicos, mesmo que estes músicos fossem só MCs. Começamos usar samplers de coisas que produzíamos, gravávamos no estúdio ou no palco e depois sampleávamos nós mesmos.

Trabalho Sujo - Very Mercenary parece um disco mais trabalhado.
Ollie - É só impressão. Blow Your Headphones foi mais difícil de fazer, era só eu e Jake e vários equipamentos. Queríamos criar um disco como The Adventures of Grandmaster Flash & the Furious Five on the Wheels of Steel. Mas isso é muito difícil de se fazer, trabalhar só com samplers alheios. Quando começamos a nos reciclar, percebemos que aí estava a chave. Esse disco também foi mais rápido pra ser feito, começamos a trabalhar com programas de computador que fazia em minutos o que levávamos horas.

Trabalho Sujo - O disco tem toda uma atmosfera de trilha sonora...
Ollie - Adoramos música de filmes. Os dois discos são trilhas sonoras pra filmes que não existem. À medida que íamos fazendo o disco percebíamos isso. Então desenvolvemos um tipo semelhante de conceito, que era só uma forma de podermos mostrar diferentes estilos musicais. A maioria dos grupos de hip hop usam um ritmo pesado, um rapper e alguns scratches. Queríamos um tratamento diferente, movimentos diferentes, contar uma outra parte da história. E queríamos usar faixas funk ao vivo também. Você deveria ver um show, é tão melhor.

Trabalho Sujo - Vocês têm planos de lançar um disco ao vivo?
Ollie - Não. Pensamos em lançar um ao vivo no estúdio já nesse, mas seria uma mudança muito radical. Devemos fazer um ao vivo no estúdio como um EP, para lançar entre este disco e o próximo.

Trabalho Sujo - Legal você afirmar que faz hip hop, mesmo indo contra a corrente do que achamos que seja o gênero - essa coisa do ritmo, MCs e scratches que você falou.
Ollie - Se você pegar qualquer estilo musical, especialmente os mais velhos, fica muito fácil ver os diferentes setores. Todo mundo pega um pouco e contribui. Não é porque não somos de Nova York ou de South Central que não podemos fazer hip hop. Só porque viemos de Londres - e nem do centro de Londres, nós viemos do subúrbio, que é todo bonitinho com árvores e parques -, não significa que nós não entendemos a música. Não estamos fingindo, sentimos isso. Herbaliser é a nossa contribuição para isso tudo.
O hip hop é uma música muito híbrida, pode tanto alterar nosso ambiente político quanto ser vendido na TV. O melhor é que ele pode apropriar-se de qualquer gênero: jazz, soul, música de desenho animado, infantil, de filme pornô. Só começamos instrumental porque não conhecíamos nenhum MC. Mas percebemos que podíamos fazer o mesmo tipo de disco sem as letras. Para compensar, não fizemos um disco só pra DJ. Nem queríamos fazer big beat. Tudo isso é muito óbvio. Queremos dar ênfase na música como um todo, não só ao ritmo ou outros aspectos. É muito fácil fazer um ritmo pesado.

Trabalho Sujo - E o que você conhece de música brasileira?
Ollie - Muito pouco. Amon Tobin (risos). Eu conheço a música brasileira mais como um todo, sei distinguir que é brasileiro, mas não conheço muitos artistas. Eu gosto do Lalo Schinfrin, mas acho que ele é argentino. Adoraríamos tocar aí, só ouvimos coisas boas do seu país.


4:30 AM

 
INTRODUÇÃO AO TRANCE

Trance é música de rave. Todas as outras vertentes da música eletrônica (house, drum’n’bass, big beat, hardcore, trip hop) funcionam dentro destas gigantescas celebrações coletivas, mas o trance é sua trilha sonora oficial. O motivo está na cara da música: do mesmo jeito que uma rave, uma faixa trance não parece ter começo nem fim, puxando uma seqüência de "ciclos" (explico isso depois) tão indistintos entre si como as músicas que tocam em raves. O ritmo é o mesmo, mas as aliterações de oscilações sonoras vão variando entre si, ornamentando o beat central como uma espécie de vibração natural que saísse dele, uma energia colorida que parece ser inerente ao groove.

Se você ainda não entendeu, pegue o Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, da sua coleção e coloque na terceira faixa, On The Run. Ali, pilotando um pré-histórico gravador que possibilitava um trecho de som ser repetido infinitamente (grudando o final diretamente ao começo, criando um loop), Roger Waters começou a viajar nas possibilidades de ir mudando, gradualmente, o formato de uma seqüência de loops aos poucos, criando uma estranha sensação de estar sendo conduzido pela repetição do som. Adicione a esta faixa o ritmo marcial da house music (com o bumbo eletrônico agressivamente incisivo) e temos o trance. Em volta de uma marcação única de ritmo, o DJ constrói e conduz pequenos ciclos de música (variações sobre uma seqüência de loops), encaixando-os como se jogasse Tetris no computador. A sensação é de uma dança claustrofóbica sem fim - Blade Runner, se este filme fosse sobre uma festa.

Camilo Rocha é velho conhecido de quem acompanha a cena de dance music no Brasil. Saindo do jornalismo de música e se dedicando ao seu alter ego DJ ("deixando de ser estilingue pra virar janela", como diz o jargão), ele nos presenteia com Rave Trip (Trama), uma ótima transição entre as duas carreiras. Através de alguns "hinos" trance da cena rave brasileira, ele nos conta a criação e formação desta, em que teve participação ativa. No encarte, ele explica qual é a de cada uma das músicas e nos conta uma breve história das raves no Brasil. Uma introdução didática para quem quer se aventurar por um universo que ainda é tido como alienígena e que cada dia está mais incorporado ao nosso dia a dia.






ENTREVISTA: CAMILO ROCHA

Trabalho Sujo - Conte sua primeira experiência como DJ. Mesmo se for caseira.
Camilo Rocha - As primeiras experiências como DJs foram em festinhas no bairro das Perdizes, em São Paulo, em salões de festas de prédios, casas de amigos esse tipo de coisa. A primeira experiência mais profissional foi no Nation (o original) em 1988, ao lado de Renato Lopes, substituindo o Mauro Borges que tinha ido morar na Itália. Eu tocava de Eric B & Rakim a Todd Terry a Donna Summer a Bomb The Bass a B-52 a S'Express a Chic.

Trabalho Sujo - Qual foi seu Smoke on the Water na vitrola? Que música você mais tocou até pegar o jeito das picapes?
Rocha - Na verdade, nenhuma em especial. Quando você treina mixagem você vai tocando como se tivesse fazendo um set aí vai botando uma música atrás da outra dos discos que você tem. Como eu só peguei "o jeito" mesmo há uns dois anos, pode-se dizer que eu aprendi tocando muito hard trance e acid techno mesmo.

Trabalho Sujo - E seu alfabetizado em música?
Rocha - Eu comecei a virar um obstinado por música lá por 1985. Quer dizer, antes já comprava discos e curtia mas foi só desse ano em antes que a coisa tomou proporções sérias. Um motivo foi que eu descobri com alguns amigos um tipo de música que a gente podia chamar de "nossa" que os outros não conheciam. Você sabe como esse ingrediente de exclusividade conta na formação de qualquer fanático musical. Bem, no nosso caso eram coisas como Cure, New Order, Siouxsie, Echo & The Bunnymen, Depeche Mode, Bauhaus, Cocteau Twins, essas coisas. Mas eu era também vidrado em novidades, já começava a comprar umas revistas gringas. Quando veio o estouro do hip hop tipo Def Jam (Run DMC, Beastie Boys) eu fui atrás dessas coisas. E em 1987, conheci as primeiras coisas de house que achei do caralho tipo Marshall Jefferson, Steve Silk Hurley e Frankie Knuckles.

Trabalho Sujo - Você passou metade dessa década insistindo, como jornalista, a música eletrônica para dançar. A popularização desse tipo de som te vingou? Ou ela está banalizando o chamado "techno"?
Rocha - Bom, eu sempre achei que estava certo e que música eletrônica e dançável era o caminho. Hoje, acho engraçado ver tanta gente que ouvia Pearl Jam quando eu ouvia Leftfield ou Altern 8 falando como é fã de eletrônica. Veja bem, nada tenho contra descobrirem a eletrônica tardiamente (nem me sinto "vingado", tenho mais com o que me preocupar) só não suporto é os que posam de bacanas, entendidos e com aquela história de "sempre gostei". Também não gosto de muita gente que veio do rock que insiste em elogiar ou analisar a eletrônica sob um prisma rock, se valendo dos mesmos paradigmas tipo "ah, eles tocam mesmo ao vivo" ou uma irritante mania que tem aparecido que é considerar a eletrônica não-dançante, "cabeça", mais valorosa do que o material feito para dançar. Este é um erro fundamental, típico de quem não freqüenta uma pista e nunca ficou numa rave até o amanhecer.
Isso é uma espécie de banalização do techno, rave etc.. A outra seria a popularização a la Jovem Pan que é inevitável por mais que a gente não gosta. Mas a música eletrônica tem uam espetacular capacidade de reinvenção graças a seu vasto underground. Então de repente certo tipo de eletrônica mais radiofônica pode se popularizar mas sempre vai ter muita coisa mais experimental e menos óbvia que continua mantendo a qualidade.

Trabalho Sujo - Explique o que é trance para um leigo.
Rocha - O trance na verdade já conta com várias ramificações que se distanciaram tanto uma da outra que fica difícil achar pontos em comum. Por exemplo, tanto eu como Dmitri como Rica Amaral somos considerados DJs de trance mas o nosso som é bem diferente um do outro. Um dos poucos pontos em comum entre os tipos de trance é o caráter progressivo da música, de camadas que vão se sobrepondo, isto é, enquanto house e techno tem uma estrutura mais linear, mais "planície", mais fechada num groove, o trance tem altos e baixos, "picos e vales", clímax e tensão, o que proporciona mais euforia na pista em geral. Entre os tipos de trance eu identifico quatro principais: o que eu toco, isto é, hard trance e acid techno, o primeiro pesado e bem na cara mas com seus momentos de melodia; o segundo mais pesado, às vezes sujo, com bastante TB 303 e muitos timbres associados ao techno mesmo (muitos chamam de techno-trance), só que bem suingado, com batida e percussão criativa; depois tem o goa trance, ou psy-trance ou trance psicodélico que é para mim o rock progressivo (no pior sentido) da eletrônica, muitas firulas de teclado, pouca ênfase no ritmo (seria o mais branco dos ritmos eletrônicos) e músicas onde o principal são os teclados viajantes e não o ritmo; e tem ainda o euro-trance que é o mais comercial, mais melódico, dramático, e o que anda mais fazendo sucesso no mundo inteiro.

Trabalho Sujo - É difícil ser jornalista e artista ao mesmo tempo?
Rocha - O mais difícil dessa história eu acho que foi ser levado a sério comoDJ. Muita gente deve ter pensado e talvez muitos ainda pensem que "olha o jornalista metido a ser DJ também". Ainda bem que eu me dediquei e seguro muito bem minha onda a ponto de nego que não botava uma fé vir pagar um pau e dizer que achou do caralho. Acho que as duas coisas se complementam no meu caso pois lidam com muita informação e paixão musical.

Trabalho Sujo - Por que seu primeiro disco quis contar a história das raves?
Rocha - Porque ela nunca tinha sido contada. Então achei importante fazer o registro. Depois quis fazer do disco algo que representasse as raves, então tinha que ter algo mais do que só música. E outra: eu adoro pegar um disco e ler um encarte que contextualiza o som que estou escutando.

Trabalho Sujo - É possível que a música eletrônica pra dançar saia dos guetos club e rave? Isso já acontece lá fora?
Rocha - Sem dúvida acontece lá fora, especialmente na Europa. E já acontece aqui, no caso de artistas pop sendo influenciados pela eletrônica (o Pato Fu, por exemplo), da quantidade de gente diferente que vai em raves, dos comerciais de TV usando música eletrônica e de empresas como a Philips e a Levi’s investindo nesse filão.

Trabalho Sujo - Qual a principal tendência deste estilo lá fora hoje?
Rocha - O trance é sem dúvida a mais forte lá fora e aqui também. Continua uma recuperação do electro muito forte como se vê nos trabalhos do Leftfield, Les Rhytmes Digitales e Luke Slater.

Trabalho Sujo - E os teus artistas favoritos da atualidade: nomes e nomes dos discos (mesmo que sejam singles ou 7").
Rocha - O pessoal do acid tecno tipo DAVE The Drummer, os Liberators, DDR, DJ Gizelle, selos como Smitten, Routemaster, Hazchem, COSHH e Stay Up Forever. Depois tem nomes como Jark Prongo, Chemical Brothers, Underworld, Orbital, Commander Tom, X-Cabs e John Digweed.

Trabalho Sujo - E o seu próximo projeto em disco?
Rocha - Ano que vem deve sair Rave Trip volume 2, já que o primeiro está vendendo bem. Também estou começando a fazer música junto com um amigo, o DJ Yah! que é um novo talento das pick-ups. Nosso primeiro trabalho é um remix para "Re/Pe" do Otto que será incluído no disco de remixes que ele vai lançar ano que vem.

Trabalho Sujo - Pra acabar: o crime (batalhar por uma cena que nem existia no Brasil) compensa?
Rocha - Totalmente, se você acredita num lance insista que uma hora a coisa decola.

4:30 AM

 
PÓS-SAMBAS DO EXÍLIO

Quando saiu do Brasil para morar na Alemanha, Thomas Pappon foi obrigado a matar seu filho favorito - o Fellini. A ida de Thomas para a Europa impossibilitava a existência do primeiro grupo independente brasileiro e todos concordaram em por fim às atividades do grupo. Da Alemanha, Thomas foi para a Inglaterra, arrumou emprego na BBC e ficou de correspondente inglês de algumas publicações brasileiras.

Mas não parou de fazer música. De lá pra cá, montou seu pequeno e improvisado estúdio caseiro onde desestressava-se diariamente. Gravando sozinho seus sambas do exílio (e insistindo para a mulher fazer backing vocals em algumas faixas), ele continuava solitariamente o legado felliniano, mesmo que produzindo apenas para si.

Esta produção pessoal torna-se pública com o lançamento de seu primeiro CD, Os Eurosambas 1992-1998 (Midsummer Madness). Lançado sob sua nova alcunha artística, The Gilbertos, o disco finge-se de MPB para fugir da sombra do Fellini. Mas mesmo citando João Gilberto, Vinícius de Morais e Baden Powell como primeiras referências, o som que Thomas faz é a continuação natural do trabalho do Fellini. Ou, como Cadão Volpato assume, "coisas que eu modestamente gostaria de ter cantado antes da aposentadoria".

Mas o clima é mais distante, mais disperso que o do Fellini. Tocando com um grupo Thomas dava vazão à agressividade pós-punk que surge domesticada e cansada nos Gilbertos. Longe do Brasil, os pós-sambas de Pappon vivem em um outro tipo de manhã de domingo. Enquanto no Fellini eles se recuperavam de uma noitada, nos Gilbertos eles acordam depois de uma noite inteira em casa, às claras ("eu durmo, menina, na hora de levantar", confessa em Minha Menina). Tanto a voz de Thomas (mais grave, mas às vezes bem próxima ao timbre de Cadão, talvez sem apenas a "malandragem" que o antigo vocalista fingia ao cantar) quanto os timbres escolhidos por ele soam preguiçosos e à vontade, sem a seriedade que o Fellini dava à sua carreira.

Mas nem só de Fellini vivem os Gilbertos. Apesar do antigo grupo renascer em alguns momentos do disco (em especial na ótima Everywhere, com letra de Cadão), outras referências surgem no decorrer dos Eurosambas, como Walter Franco (em Esguicho), música nordestina (Amor Amor Amor) e Byrds (Polly, de Gene Clark). Um excelente "projeto paralelo" que só engrandece ainda mais a carreira do Fellini. Se você é fã, não perca tempo e peça pelo correio (Rua Lauro Muller, 26/805. Botafogo. Rio de Janeiro-RJ. CEP 22290-160) ou via internet (http://www.mmrecords.com.br).






ENTREVISTA: THOMAS PAPPON

Trabalho Sujo - Fale da sua transição Brasil-Europa. Queria que você falasse sobre a sua relação com o velho continente e de sua decisão de morar em definitivo na Inglaterra.
Thomas Pappon - Sempre tive uma ligação forte com a Europa, em especial a Alemanha. Meu pai, alemão, trabalhava na Bayer e recebeu proposta para trabalhar no Brasil. O contrato estabelecia que a familia toda tinha direito à passagens para a Alemanha a cada dois anos. Quando fiz 18 anos já tinha ido 9 vezes para a Europa. Estudava num colégio alemão em São Paulo, tinha vários amigos bilingues, na mesma situação, eram todos alemães brasileiros ou brasileiros alemães, que recebiam influências das duas culturas. Com isso, tive acesso à cultura adolescente alemã, aos discos e revistas consumidas pelos jovens de lá. Minha ida para a Europa era apenas uma questão de aguardar o momento certo. E ele veio em 91, quando não havia mais nenhuma grande razão para ficar no Brasil. Morei 8 meses em Frankfurt, quatro anos em Colônia e estou há pouco mais de três anos em Londres. Fiquei de saco cheio da Alemanha, principalmente dos alemães, só não voltei ao Brasil porque me dei bem em Londres. Mesmo não tendo conseguido realizar o antigo sonho de viver de música, estou satisfeito com o meu trabalho na BBC.

Trabalho Sujo - Como isso afetou sua música?
Pappon - No Brasil todo a minha energia e criação musical era dedicada ao Fellini, que eu idolatrava - não agüento ouvir o Max do Sepultura ou o Nick Cave dizendo que nunca ouvem seus próprios discos. Foi duro me conformar com o fim do grupo, com minha ida para a Alemanha. Assim que cheguei na Europa, tratei de montar um mini estúdio caseiro, bem fuleiro mesmo, apenas o básico: um porta estúdio, uma guitarra coreana vagabunda, um violão emprestado por uma prima, um ritmo eletrônico barato (Dr. Rhythm), um teclado Yamaha que saiu de série há séculos, baixo, microfones, cabos, fones, etc. Tudo para poder fazer música sozinho, pois jamais seria capaz de encontrar as pessoas certas para fazer uma banda na Europa.

Trabalho Sujo - Existe um componente específico nas músicas do disco que parece ter uma certa saudade do Brasil. Este disco só poderia ser feito no exterior?
Pappon - Não tenho dúvidas. É natural. O disco que o Caetano fez em Londres só poderia ter sido feito em Londres.

Trabalho Sujo - Qual é a sua rotina criativa? Onde ela começa: no estúdio, no violão, no escritório? Fale um pouco disso...
Pappon - Parei de fazer música o ano passado. Mas minha rotina era assim: voltava do trabalho, fumava um baseado e pegava no violão. Todas as músicas do disco, exceto as mais recentes -- feitas em Londres, que partiam sempre de um loop feito no sampler -- começaram assim. Depois programava ritmos (ô tarefa chata!), punha baixo , teclado, vozes, etc.

Trabalho Sujo - Os Gilbertos são um projeto de estúdio ou existe a possibilidade dele vir aos palcos (brasileiros, por que não)?
Pappon - Exceto uma pequena apresentação num boteco em Colônia, onde eu e minha mulher tocamos cinco ou seis músicas, que nem eram nossas (Jobim, Dori Caymmi), acompanhados por um cantor queniano, os Gilbertos são e creio que continuarão sendo um projeto caseiro. A não ser que o dezenas de centenas de milhares de pessoas tomem as ruas, exigindo apresentações ao vivo dos Gilbertos. Aí, quem sabe...

Trabalho Sujo - Qual a participação da sua mulher no processo criativo?
Pappon - A Karla deu palpites, fez backings a contragosto e serviu de inspiração para noventa por cento das letras. Praticamente as letras falam sobre dois assuntos: saudades do Brasil e a relação com minha mulher no frio europeu.

Trabalho Sujo - O que você achou da recepção que o Fellini teve com sua volta no fim do ano passado? O que você esperava e o que você achou do que aconteceu?
Pappon - Sensacional. Foi a confirmação de que o Fellini era mesmo uma banda cult, que estava na frente do seu tempo. Demos vários autógrafos, curiosamente apenas para fãs do sexo masculino, o que me deixou um pouco preocupado. Mas para o grupo foi um experiência inesquecível, foi nossa primeira ''turnê''.

Trabalho Sujo - Lançar seu primeiro disco solo via independente é uma forma de dar continuidade ao pioneirismo do passado?
Pappon - Você está querendo saber se eu recusei à dezenas de convites para lançar o disco por uma multinacional? Fiquei encantado quando o Lariú me escreveu, dizendo que tinha gostado do trabalho e que queria lançá-lo. É o esquema que mais aprecio, com pessoas realmente interessadas envolvidas. Pelo que sei, ninguém mais agüenta axé e pagode no Brasil, e o rock está para estourar. Me falaram que várias gravadoras disputaram o "passe" dos Autoramas. O Lariú é um A&R de grande talento, ouvi os últimos trabalhos do Grenade e do Feedback Club e fiquei desbundado. Se fosse chefão da Sony, Warner, EMI, etc., contratava o Lariú imediatamente para dirigir um selo de rock.

Trabalho Sujo - Havia um projeto que relançaria sobras e b-sides do Fellini. Em que pé está isso?
Pappon - Infelizmente o viado do Cadão está para me mandar, faz meio ano, a única gravação do Fellini que não tenho, a de um show no Teatro Ipanema no Rio de Janeiro em 89 ou 90. Enquanto essa fita não chegar , não vou me mexer. Mas a idéia é lançar as sobras, raridades e coisas ao vivo do Fellini.

Trabalho Sujo - Quais são os planos a curto e longo prazo? A próxima vinda ao Brasil vai incluir alguns shows?
Pappon - Na verdade queria muito que o Fellini se apresentasse no Abril Pro Rock, pois temos vários fãs em Recife, cidade que estou louco para conhecer. Tentei agitar isso com o Paulo André, mas ele sumiu. Como a Karla está grávida, e o bebê deve vir em maio, acho que não vai rolar nada no próximo ano.

4:29 AM

 
SHOW: TORTOISE + TOMZÉ
Quinta, 16 de dezembro de 1999
Sesc Pompéia (São Paulo)

Teatros que têm duas salas costumam ter o mesmo palco. Se tirarmos o fundo do dois palcos, colocamos as duas platéias frente a frente. A engenharia explica isso, afinal, deixar dois palcos juntos no mesmo espaço facilita bastante as coisas. Não sei se você reparou, mas olhando a sua casa de cima, os banheiros e a cozinha ficam próximos entre si, mesmo que tenhamos que dar voltas pelos corredores para sair de um e chegar no outro. Desta forma, a tubulação hidráulica desce toda pelo mesmo pilar, facilitando a vida de quem está desenhando o prédio. No teatro é a mesma coisa. Se você vai construir duas salas, use a área central para fazer os palcos de ambas salas. Assim, a parte elétrica (fios, mesas de som, holofotes, spots, microfones) e a estrutural (basicamente os camarins) ficam centralizadas em ambas as salas.

Assim é o teatro do Sesc-Pompéia, em São Paulo, que assistiu na quinta-feira passada o último encontro de uma série de shows que reuniu, no Brasil e nos Estados Unidos, o grupo de pós-rock Tortoise com o nosso velho amigo Tomzé. O show aconteceu nas duas salas ao mesmo tempo e, para isso, foi tirado o fundo de ambos os palcos. O lugar ficou parecendo um anfiteatro grego, com o palco no meio da platéia, o que deu à apresentação um clima de proximidade entre o público e a platéia.


A primeira parte do show, apenas com o Tortoise no palco, foi assistida como uma missa de música. Os únicos músicos que não trocaram de instrumentos durante o show foram o operador de som Casey Rice (peça fundamental dos shows do grupo) e o guitarrista Jeff Parker. Tirando ele, todos os outros trocavam de instrumentos o tempo todo, em geral no meio das músicas. O quieto Doug McCombs ficava trocando entre o baixo e a guitarra, enquanto John McEntire, John Herdon e Dan Bitney não paravam: entre xilofone, percussão, baixos, vibrafones, teclados, piano e bateria, os três tocaram de tudo durante todo o show.

Por uma hora e meia, desfilaram seu último álbum, TNT, quase na íntegra, voltando-se para o excelente Millions of Now Living Will Never Die em The Taut and Tame, A Survey e Along the Banks of Rivers. As formações eram as mais diversas. Em TNT, a banda era baixo, guitarra, bateria, teclados e percussão. Ten-Day Interval (brilhante) contou com três no vibrafone, baixo e guitarra. Swing From The Gutters vinha com duas guitarras, percussão, teclados e xilofone. The Taut and Tame trazia dois baixos, guitarra, percussão e vibrafone. E por aí foi.

Se divertindo pacas, o grupo sorria quando sentia a química fluindo, trocando olhares que confirmavam os melhores momentos do show. Mas, se por um lado tudo parecia uma grande jam, a interpretação foi idêntica às dos CDs. Não que isso comprometesse o show, mas faltou aquele tipo de improviso mais livre, menos acadêmico, que o gênero pós-rock parece trazer embutido. Ao contrário, em alguns momentos o grupo parecia apenas testar ao vivo arranjos que deram certo no estúdio - mas com aquela precisão técnica de universitário estudante de música: era possível observar os pés dos músicos marcando compassos dos mais estranhos, uns marcando ritmo com 6/8, outros com 5/4, muitas vezes na mesma música.

O protocolo foi quebrado à entrada de Tomzé. Ao lado do fiel escudeiro Jarbas Mariz, ele começou o show gemendo sons incompreensíveis ao microfone, enquanto o Tortoise atacava, seguindo os mesmos arranjos de Tomzé, Defeito 2: Curiosidade. A maioria dos presentes parecia conhecer Tortoise na ponta da língua, mas desconhecia o trabalho do velho baiano. Percebendo isso, Tom explicava com cuidado versos cuja sutileza não precisa de explicação ("Quem é que tá botando dinamite na cabeça do século?" - clara e bela referência ao fato do inventor da dinamite patrocinar o prêmio mais importante à inteligência ocidental, o Nobel). Pulou de 1998 para 1972, quando revisitou Augusta, Angélica e Consolação, sua homenagem a três das principais ruas de São Paulo. Botou Mariz para cantar os versos e pôs-se a incitar o público a cantar.

No palco, mais do que em disco, Tomzé é um moleque. Não pára quieto um minuto, desafia o público com piadas infantis e assim o fez com a velha conhecida Jingle do Disco, que causou gargalhadas a uma platéia que mal conhecia o trabalho de Tom. Dali pulou pra Defeito 3: Politicar, em que xinga com uma delicadeza ácida a política como um todo, ao mesmo tempo em que desfaz-se, rasgando, de um terno azul marinho. Depois colocou os pós-rockers do Tortoise para tocar Smoke on the Water, Satisfaction e Day Tripper - era a introdução de Defeito 9: Juventude Javali, pós-rock ao pé da letra. A faixa deu origem a um dos melhores momentos instrumentais do show, o duelo entre Jeff Parker (na guitarra) e Jarbas Mariz (no bandolim).

O ápice do show aconteceu em Defeito 1: O Gene, em que Tomzé vestiu toda a banda como operários (jaleco, capacete, óculos, luvas) e causou delírio ao tocar samba ralando agogôs em dois esmeris instalados no palco - as luzes abaixavam e só se via o jato de faíscas. Encerrou o show com a sintomática Ogodô Ano 2000 e, bastava passear os olhos pelo palco para ver o estrago que ele fez com o grupo de Chicago: John Herdon tocava um surdão, Doug McCombs tocava com um serrote nas mãos, John McEntire na bateria tocava um triângulo, Dan Bitney tentava acompanhar o bandolim no xilofone. Ao final do show, todos se abraçaram e agradeceram ao público, que aplaudiu de pé por dez minutos a jam. Genial.



ENTREVISTA: JOHN McENTIRE


Trabalho Sujo - Como foi fazer estes shows com o Tomzé?
John McEntire - Foi muito inspirador. Ele é uma pessoa fantástica, existem poucos caras como ele no mundo... De cabeça, só me lembro do Mayo Thompson (líder da lendária banda psicodélica dos anos 60, Red Crayola).

Trabalho Sujo - Tomzé parece não fazer distinção entre dentro e fora do palco.
McEntire - Sim. Sua persona de palco é ele mesmo, ele é o mesmo cara. Criou esse território artístico que é impossível resistir.

Trabalho Sujo - Dos shows que vocês fizeram juntos, quais foram os melhores?
McEntire - Houveram ótimos shows, tanto aqui quanto nos Estados Unidos. Em San Francisco, fizemos uma apresentação fantástica. Hoje também foi um show único.

Trabalho Sujo - Vocês apresentaram algum material inédito?
McEntire - Não. Não tocamos músicas inéditas em shows, compomos tudo no estúdio e só mostramos elas pro público depois de gravada.

Trabalho Sujo - E quanto ao próximo disco do Tortoise?
McEntire - Fica pro ano que vem. Já temos algumas idéias, mas deixamos para ver isso quando entramos no estúdio.

Trabalho Sujo - O que achou do Brasil?
McEntire - Excelente. Infelizmente não tivemos tempo pra fazer muitas coisas, apenas conhecemos algumas pessoas e todas são extremamente simpáticas conosco. Achei o país ótimo, fazia tempo que não nos divertíamos tanto. Queremos voltar logo, de preferência, com mais tempo.

4:29 AM

 
CULTURA INÚTIL

Por motivos de força maior, o Trabalho Sujo não sairá nas próximas duas semanas. Com isso, as tradicionais edições da Retrospectiva e Melhores do Ano saem do final do mês de dezembro para adentrar de vez em janeiro. Mas se, por um lado, a versão impressa tira essas duas semanas de férias forçadas, a versão online não pára. Por isso, para ler sobre os lançamentos do Dr. Dre, Tomzé, O Rappa, o selo Sambaloco, Nightmares on Wax, Luna, Iggy Pop, David Bowie, o rapper Roots Manuva, entre outros discos, você vai precisar procurar um computador com conexão à rede mundial de computadores e digitar nosso endereço (http://www.diariodopovo.com.br/trabsujo ). Aproveite a deixa como uma desculpa para visitar nosso site. Desde que perdemos uma página, o site traz novidades que não cabem na edição impressa, funcionando como complemento para a versão em papel (além de contar com as edições passadas). Retrospectiva e Melhores de 1999 ficam para o final de janeiro, quando passaremos o melhor deste ano (que conseguiu ainda ser melhor que o anterior). O que quer dizer que ainda voltaremos a 99 no começo do ano que vem. Dê uma passada na homepage e não esqueça de preencher seu cadastro. Se você está lendo isso na homepage e não preencheu o seu ainda, não perca tempo

"Selva de concreto/ Animais atrás de mim" (Specials)

4:28 AM

 
JECKYLL & HYDE
JOHN CALE
Sesc Vila Mariana (São Paulo)
Quarta-feira, 9 de dezembro de 1999


Foi só ele entrar no palco e todos se calaram. Parecia aquele velho professor de história que tomou alguma coisa no passado e até hoje não conseguiu voltar ao normal, dando aulas tão extravagantes quanto divertidas. Surgiu no palco com um blaser marrom sobre uma camiseta preta, calça marrom escuro, calçando um par de tênis escandalosamente vermelhos. Os comentários logo começaram a ser sussurrados, como se aquele professor de história tivesse vindo com um sapato de cada cor.

No palco, um piano de cauda, um violão no pedestal, três banquinhos, um com um pequeno teclado antigo em cima e uma mesa com samplers. Primeiro Cale pegou o violão e cantou duas músicas novas, sem apresentá-las ao público. Não precisava. Ao violão, Cale se permite ao desleixo - impensável ao piano - e a ênfase da apresentação fica por conta de sua interpretação. Sua voz parece sequer precisar de microfone, ela invade o ambiente num misto de tédio e fúria e agarra o espectador à força. Do berro ao sussurro, o maestro galês passa de músico erudito contemporâneo a velho punk em questão de segundos, entre um verso e outro.


Ele vai ao piano, seu instrumento de origem. Do mesmo jeito que acariciava e esmurrava o violão, ele é Jeckyll e Hyde em frente ao piano, mas ao contrário do outro instrumento, aqui ele sabe tudo. Interessante perceber como suas mãos acabam servindo de metáfora para si mesmo: enquanto os polegares e indicadores são incisivos, assinalando a repetição de acordes com força e violência, os outros três dedos floreiam arpegios nos espaços vazios, quase um tique de músico erudito.

Ao piano, canta dois poemas de Dylan Thomas e entra em seus clássicos. Eles surgem um atrás do outro: primeiro uma versão fria para Child’s Christmas in Wales seguida de uma imponente Chinese Envoy. “Essa é uma canção para Drella”, ele anuncia antes de entrar na bela Style it Takes, composta ao lado de Lou Reed no disco Songs for Drella, de 89, homenagem ao padrinho do Velvet Underground, Andy Warhol.

Volta ao violão, desta vez com Leaving it Up to You, tocada com míseros dois acordes. “Essa música é sobre dois caras que se apaixonam na cadeia”, brinca com o público, “na verdade é a minha versão para o filme The Ballad of Cable Hogue, um filme de Sam Peckinpah” e entra em Cable Hogue, do subestimado Helen of Troy, de 75.

A Dream dá início ao único deslize do show: a entrada de Adam Dormblum. Ele senta-se na mesa de samplers ao lado do pequeno teclado vermelho de Cale e começa a disparar ruídos eletrônicos e pedaços de música. Até aí tudo bem, o problema é que a noção de modernidade eletrônica de Dormblum ficou parada no 1994 de Dummy, do Portishead.

Mas a presença de Adam incomodava menos quando o velho Velvet abria a boca. Em suas incursões ao lado do único músico convidado do show, Cale deixava de cantar para apenas contar histórias. Começa com a já citada A Dream, também de Songs for Drella, onde Cale encarna um Warhol no meio de um sonho, reclamando, às vésperas da própria morte, dos amigos que o deixaram de lado - incluindo aí Cale e Reed, citados nominalmente. Gun - “uma música sobre uma dupla de detetives” - perde toda força e transforma-se numa peça tensa que preenche todo o teatro do Sesc - uma excelente casa de shows, diga-se de passagem. Cale não parece ter envelhecido, ele parece ser exatamente o que sempre foi. Ou melhor: ele sempre foi velho, mesmo aos 20 anos. Natural que envelhecesse com classe.

De novo ao piano, ele rendeu Chasing Ghosts antes de entrar em sua parceira com Brian Eno, Cordoba. “Quando estava gravando o disco Wrong Way Up com Brian Eno, às vezes não tínhamos idéias para as letras. Então entrávamos na enorme biblioteca de Brian e ficávamos passeando pelos livros. Até que encontrei um livro de exercícios de inglês para quem fala espanhol. Essa letra era o Exercise 24 do livro, cujo nome íamos manter. Mas aí eu vi uma matéria sobre um terrorista espanhol chamado Cordoba e batizei-a com este nome”. Depois de Cordoba, ele volta aos anos 70 - “essa é do Elvis Presley” - em sua personalíssima versão para Heartbreak Hotel, que perdeu os toques de soul music da versão do disco Slow Dazzle, de 75, e aparecia sóbria. Fechando o show, ele atacou Fear is the Man’s Best Friend, transformando o teclado piano num instrumento de percussão e destruindo a própria garganta de tanto berrar. Aplaudido de pé, voltou para o último número: uma versão para Hallellujah, de Leonard Cohen. Cale se despediu com um sorriso nos lábios. Um acústico e individual, mas com tanta energia e vigor quanto o outro melhor show deste ano, o dos Chemical Brtohers

4:28 AM

 
DE VOLTA AO POP

Não dava pra não gostar do Foo Fighters. Afinal, quando Kurt Cobain explodiu o Nirvana junto com seus próprios miolos, nossos olhares se voltaram para Chris Novoselic e Dave Grohl. Enquanto o baixista se meteu com política pra valer, adiando com a barriga sua próxima cria musical (o fraco mas heróico Sweet 75), o baterista logo se apressou em trazer suas composições à superfície.
Todo mundo simpatizava com Dave Grohl, desde quando apenas fazia os backing vocals e destroçava a bateria mais vigorosa de todo o grunge no Nirvana. Quando trouxe o primeiro disco de sua banda, parecia uma criança mostrando orgulhosa os primeiros desenhos. Mas o melhor de tudo era como eram bons: This is a Call, Big Me, I’ll Stick Around, Alone + Easy Target... Foo Fighters, o disco, foi o tipo de surpresa que o fã do Nirvana gostou de ter tido.

Mas com a morte de Cobain, o rock ficou sem seu ídolo. Ao mesmo tempo, o fim do Nirvana decretou a morte já anunciada do chamado rock alternativo para o mercado. Desesperada, a indústria fonográfica acabou se agarrando em quem eles achavam que podiam ser o novo líder das paradas de sucesso: tentaram os Smashing Pumpkins, o Presidents of the United States of America, Alanis Morrissette, Bush... E, claro, os Foo Fighters.

Gravaram o segundo disco, The Colour and the Shape, com o produtor Gil Norton (Pixies) e aumentaram todos os volumes que puderam. Logo os Foo Fighters recuperavam o peso que Grohl havia abandonado no Nirvana - só que era outro tipo de peso. No lugar do barulho jurássico e hermético misto de Black Sabbath com Black Flag, entrava um peso arrojado, futurista, digital, fazendo as referências heavy metal de Grohl passarem de Sabbath para Van Halen. A formação da banda ajudava a localizar o grupo no contexto do “rock alternativo”: na segunda guitarra, Pat Smear (ex-Germs), no baixo, Nate Mendel (ex-Sunny Day Real Estate) e na bateria Taylor Hawkins (ex-Alanis Morrissette). Era um supergrupo de rock alternativo.

Só que ao ficar na mira que já havia apontado para Cobain, o Foo Fighters tornou-se uma banda de rock. Mesmo com os refrões e as sétimas cantadas por Grohl, o peso punk pop que a banda procurava no primeiro disco foi atropelado por uma agressividade que exigia dos FF uma postura mais rock. O grupo já sabia que não era uma banda de rock, mas o mercado só pode ceder depois que Monkeywrench, Everlong e My Hero foram ofuscadas pela bela e singela Walking After You, cuja beleza foi focalizada pela trilha sonora do filme Arquivo X.

Com o novo disco, There’s Nothing Left to Lose (BMG), o Foo Fighters afirma definitivamente que não é uma banda de rock. Mesmo com a abertura virulenta que é Stacked Actors (em que Grohl aproveita para alfinetar com um taco de beisebol sua desafeta mais pública, Courtney Love). Ao começar o disco com uma faixa tão pesada, o grupo afirma que pode fazer rock - se quiser. Mas no centro de tudo está a beleza pop da canção, com Grohl assumindo seu papel de hitmaker.

Toda faixa nesse disco é potencialmente um sucesso e tudo deve-se à evolução da composição do antigo baterista do Nirvana. Afiando seu talento em cada faixa, ele brinca com diferentes andamentos e abordagens sonoras (usando elementos diferentes de suas influências setentistas) para fazer música pop. Breakout e Generator (óbvia e por isso perfeita) lembram os melhores momentos dos Cars e podem ter levantado as sobrancelhas de Ric Ocazek. Aurora tem aquele clima pseudo-dramático de algumas das melhores baladas dos anos 80. Headwires e Gimme Stichies lembram uma versão atualizada da primeira fase dos Tears for Fears. A melancólica Next Year surrupia seu baixo do final de Hello Goodbye, dos Beatles, mas dá crédito antes de acabar, citando à sua maneira o mesmo trecho da música do quarteto de Liverpool. Ain’t it a Life paga tributo a outros mestres do pop - Alex Chilton, do Big Star, Brian Wilson, dos Beach Boys, e Paul McCartney. M.I.A. encerra o disco voltando ao rock pesado.

Doces canções fáceis de assobiar e com a pegada rock que o pop permite. Refrões que não saem da cabeça, músicas para se ouvir no som do carro no último volume em um dia de sol, sair com os amigos, curtir a vida. O que é o pop senão isso? Essa trilha sonora escapista onde nossos sonhos parecem ser possíveis pelos três minutos que as canções costumam durar. Essa terapia de deixar as coisas ruins desaparecerem da cabeça enquanto alguém canta alguma coisa no rádio. Com seu terceiro disco, o Foo Fighters volta ao ponto que tentava discutir em seu disco de estréia: que esse som é pop com guitarras, mas não é necessariamente rock. Mas o que é rock hoje em dia mesmo?

4:27 AM

 
BOMBA DE EFEITO MORAL

O novo disco do Rage Against the Machine arrebenta.
Mas e daí?

Do mesmo jeito que tiramos o protesto do Public Enemy e a maconha do Cypress Hill, vamos tirar a política do Rage Against the Machine. Esqueçamos que eles brigam contra a opressão global sobre o indivíduo e vamos apenas ouvir, analisando sua situação como uma banda de rock. Temos uma cozinha afiadíssima: o baterista Brad Wilk é da linhagem de Lars Ulrich, do Metallica - um cara que parece quinhentas vezes mais agressivo quando assume as baquetas; o baixista Tim C (que muda nome constantemente, sendo creditado no novo disco do grupo Tim.Com ou Y.tim.K) acompanha o suíngue de Brad com firmeza e groove. À frente, Zack de La Rocha, a cara do conjunto, cospe letras que misturam ódio, rebeldia, violência e ironia.

Mas é o guitarrista de boné o cara. Tom Morello é um assombro e sua guitarra tem duas faces. Uma é a fábrica de fazer riffs perfeitos: ele cria uma frase musical e a repete repetidamente, obrigando baixo e bateria perseguirem-no em disparada. Suas influências são os guitarristas que fizeram fama em cima de introduções curtas, diretas e matadoras: Tony Iommi, Dave Navarro, Page Hamilton, Jimmy Page, John Frusciante. A repetição constante dos riffs acaba dando ritmo à música, fazendo com que Zack possa rappear em cima de uma banda de rock pesado sem parecer aqueles híbridos do começo dos anos 90 (rapcore, funkmetal e afins).

A outra face são os ruídos. Mais do que a antiguitarra do pós-punk (ele é fã confesso do Andy Gill, do Gang of Four), Morello não se contenta em tirar sons exóticos de seu instrumento. Ele gosta de fazer estes ruídos transformar-se em outros sons, ajudando a criar a atmosfera da canção. Ele toca guitarra como se tocasse um sampler e numa recente pesquisa da revista Guitar Player americana, ele não escolheu nenhum guitarrista em sua lista dos melhores, optou apenas por DJs de rap.

Mesmo roubando a cena em cada uma das canções do novo disco do RATM, The Battle of Los Angeles (Sony) não sai do que já conhecemos. O novo álbum é o disco que todo fã de Rage quer ouvir, mas todas as novidades ficam por conta do guitarrista, que vira seu instrumento do avesso para conseguir sons inimagináveis - scratch em vitrola, sirene de polícia, cuíca, moog; ele imita o que quer. Como Muggs no Cypress Hill e o Bomb Squad no Public Enemy, Morello é a força-motriz por trás do Rage.

Porém, o grupo continua fazendo exatamente as mesmas músicas. Tudo bem que não perderam a raça ao tocar suas canções - todos os discos do Rage parecem um disco de estréia, de tão urgente. Mas não pega bem para um grupo que prega a revolta, a rebelião e a revolução fazer exatamente a mesma coisa em todos seus álbuns. Como as músicas, as letras continuam falando de como os poderosos passam os desafortunados para trás e que é preciso que algo aconteça para mudar essa situação. Mas Zack, autor destas, não parece disposto a nos mostrar o que é que pode acontecer. O que deixa o grupo tão ineficaz quanto uma bomba de efeito moral: há o barulho, há a explosão, há a fumaça, mas nada além disso. The Battle of Los Angeles é um bom disco como todos os outros do Rage. Mas será que eles vão virar Ramones de si mesmos? Cairiam em contradição. Aliás, já caíram.

4:26 AM

 
CULTURA INÚTIL

Quanto mais a indústria de entretenimento se esforça para criar um arquivo que preserve a qualidade de som e seja fácil de transportar via internet, mais os hackers se divertem tentando quebrar as senhas destes arquivos - e o MP3 continua sendo o grande herói/vilão da história. De um lado, as pessoas estão trocando discos inteiros entre si, sem pagar um tostão para o artista. Do outro, as gravadoras tentam acionar a justiça para capturar esses "malfeitores". As aspas estão aí porque é claro que quem adquire música via MP3 não é bandido. É que estamos passando por um período de transição de parâmetros tão grande que hoje é difícil saber quem está com a razão. Mas num mundo perfeito - se é que estamos indo em direção a ele - não existem direitos autorais. As músicas pertencem a todo mundo, não se ganha dinheiro com a venda das músicas e sim com suas atividades paralelas - principalmente o show. O show é o principal momento de um artista: é quando ele confronta seu público e reage à reação deste. Música sendo feita ao vivo é sempre melhor que em estúdio e os shows deveriam ser tratados com mais dignidade que o próprio disco. Mas com o MP3 e a música online, a tendência é que o conceito de álbum vá para o espaço e que o show torne-se a principal vitrine de um artista. E se o assunto é show de rock, todo mundo sabe que é aí que a coisa pega. Todo mundo lembra de seu primeiro show de rock, afinal, é um momento de catarse em que ambas partes cedem ao poder hipnótico da música. É no show que as pessoas percebem que não é difícil estar do outro lado ou que seu artista favorito realmente tem algo de extraordinário (não é maquiagem de estúdio). O bom é que as bandas brasileiras estão aprendendo isso e se esforçando para fazerem de seus shows eventos memoráveis. Num mundo perfeito, todo show é

"Fique vivo se quiser" (Rolling Stones)

4:26 AM

 
OBRIGATÓRIO Nº 10
Discos que você precisa ter
Pink Flag - Wire

A química que existe entre Estados Unidos e Inglaterra é o eixo que mantém o rock em movimento. Foi por causa do blues, rhythm'n'blues e rock'n'roll americanos que uma geração de adolescentes ingleses devolveu aos ianques uma versão ainda mais direta da rebeldia original dos anos 50, garantindo a sobrevivência do mesmo como gênero. A partir desta troca inicial (a Invasão Inglesa e a Beatlemania como decorrência da explosão inicial do rock), várias outras aconteceram no decorrer das décadas que vieram depois.

Em pouco tempo, o estereótipo estava pronto: os ingleses são os modernos e os americanos são os trogloditas. Enquanto o glam rock deu à Inglaterra David Bowie e Marc Bolan, os Estados Unidos devolveram Alice Cooper e New York Dolls. A psicodelia inglesa tinha a aristocracia clássica do Pink Floyd, dos Beatles e dos Zombies, enquanto na América ela saía de jam sessions barulhentas em garagens ou casas abandonadas (gerando Grateful Dead, Doors, Love, MC5). A cultura de rua negra americana é barra pesada e luta contra a repressão (o hip hop), enquanto a inglesa passeia pelos corredores do jetset com credenciais de acesso a todas as áreas (o trip hop e o drum'n'bass). O techno de Detroit e Chicago é agressivo e marcial, enquanto a música de duplas como Orb, Orbital e Chemical Brothers ganham adjetivos lúdicos e fantasiosos. É muito fácil detectar esse estereótipo, basta confrontar personalidades distintas dos dois países. Responda rápido: quem é o mais cool e quem é o mais mané? Brian Wilson ou Scott Walker? Sonic Youth ou Smiths? Iron Maiden ou Metallica? Dr. Dre ou Tricky? Black Sabbath ou Kiss? Who ou Stooges? Inevitavelmente os americanos acabam tendo essa aura de ignorância tacanha que talvez seja inerente às suas personalidades.

Mas em um momento da história do rock - sempre tem a exceção - os papéis foram trocados. E justamente durante o movimento punk, esse cataclismo natural que dividiu o rock em mainstream e underground, que esta inversão aconteceu. Enquanto o rock vinha tornando-se cada vez mais comercial, uma geração inteira de nova-iorquinos fugia do óbvio criando sua própria cena local. À medida que o sistema corrompia e engravatava toda geração hippie, que acreditou estar no poder pelo simples fato de dominarem a moda, um pequeno pedaço de história vinha sendo escrito nas noites da cidade que nunca dorme.

A semente foi plantada na Factory, de Andy Warhol, que providenciou as primeiras platéias para as apresentações do Velvet Underground. O grupo, liderado por Lou Reed e John Cale, ia de encontro às regras vigentes do rock e inaugurava a música popular moderna ao usar o gênero como pura expressão artística - erguendo as sobrancelhas dos mais modernos ao juntar música atonal, rock primitivo, percussão de lata, viola e refrões grudentos falando sobre sexo vulgar, drogas pesadas e violência. Da Factory, aquele espírito se espalhou em outras casas noturnas, como o Max's Kansas City, e em bandas como Modern Lovers, Stooges, New York Dolls. Desta geração da primeira metade dos anos 70, saiu a primeira geração punk americana, com base na lendária casa noturna CBGB's, o pulgueiro que deixou bandas como Ramones, Patti Smith Group, Television, Blondie, Devo, Heartbreakers e Talking Heads terem suas primeiras vezes em um palco.

Todos tinham um caráter intelectual avançado. Os Talking Heads criticavam a sociedade fazendo funk de branco, o Television costurava esculturas no ar entrelaçando solos de guitarra com inigualável paixão, o Blondie parodiava o pop fazendo-o de forma irresistível, Patti Smith citava Rimbaud, Jim Morrison, Artaud e Jesus Cristo criando a mitologia para uma geração - até os Ramones, primitivos e diretos, expunham as políticas niilistas de como se atravessar a adolescência com a força de um soco na cara. Freqüentando a mesma noite que essa geração de bandas, todo o high society marginal reverenciado pela crítica local: velhos beats, artistas modernos, travestis, traficantes, empresários, adolescentes suculentas, jornalistas, junkies, escritores e diretores de cinema.

Quando essa geração aportou na Inglaterra, todo aquele intelectualismo soou apenas como um chamado às armas. Era o que toda uma safra de jovens adultos desempregados e marginalizados precisavam para se vingar contra o sistema que havia posto-os neste beco sem saída. Pegar uma guitarra e cantar contra qualquer coisa tornou-se palavra de ordem na Inglaterra e logo as bandas pipocavam como fungo por toda ilha - era a primeira vez na história do país que a música tornava-se um barulho tão violento e, pior, com tantas bandas ao mesmo tempo.

Cada banda, uma história, uma luta. Clash, Sex Pistols, Buzzcocks, Jam, Damned, Sham 69, Stranglers, Undertones, Specials, Gang of Four, Madness, Joy Division, The Beat, Siouxsie & the Banshees, Cure... Todas essas bandas surgiram na primeira grande onda do punk inglês (entre 1976 e 1979) e todas elas lutavam contra algum tipo de repressão, seja em nível pessoal, político, moral ou ideológico. Mas não tinham o glamour que a Inglaterra havia dado a seus filhos mais velhos, o aspecto nobre e diferenciado de ser inglês. Talvez apenas com a exceção ao Joy Division (cuja curta e turbulenta carreira galvanizou uma aura perfeita sobre o grupo), todos os outros conjuntos em seus primeiros anos de vida faziam questão de ostentar a rudeza de sua abordagem em relação tanto ao som quanto às letras. Depois, quase todos eles fizeram jus ao clichê da descendência inglesa e criaram seus próprios parâmetros de britanicidade, abandonando a aspereza dos primeiros discos.

Apenas um grupo soube utilizar a rispidez do primeiro punk inglês em prol de sua própria erudição. Estudantes de arte do mesmo colégio ao sul de Londres, Colin Newman (guitarra e vocais), Bruce Gilbert (guitarra), Graham Lewis (baixo e vocais), and Robert Gotobed (bateria) eram um grupo ao mesmo tempo tosco e primitivo, como anarquistas conceituais. O Wire era aquilo que Karl Marx chamava de intelectual orgânico: o sujeito que pensa e age ao mesmo tempo, sem escolher uma das funções. Levando o conceito punk a todos os aspectos da canção, o Wire não esperava muito tempo em uma música, cortando suas asas assim que ela ameaçava o improviso. Podando ritmo, melodia e estrutura, o grupo dava uma urgência minimal às suas composições, repletas de referências ácidas ao estilo de vida capitalista.

Em seu primeiro disco, Pink Flag, lançado em dezembro de 1977, o Wire condensava todo seu ímpeto artístico em canções com pouco mais de um minuto, em 21 canções (22, com o acréscimo de Options R, que não constava na versão em vinil) que sequer totalizam 40 minutos de duração. "Prestem atenção, nós somos o Wire" - sua saudação nos primeiros shows não era um aviso ou um golpe de marketing: cada palavra irrompida por Colin ou Graham no meio de suas canções era responsável pelo todo. Pareciam compor todo tipo de gênero e submeter suas músicas a uma censura de excesso tachada pelo punk. "Punk foi uma forma de confirmarmos o que queríamos fazer: música de uma forma muito simplificada".

Depois de uma participação na coletânea pau-de-sebo Live At The Roxy, a gravadora EMI os contratou no selo Harvest e deu-lhes carta branca para fazer o que quisessem. O produtor Mike Thorne, em seu primeiro trabalho de produção, encarnou com exatidão o espírito "menos é mais" que o grupo queria passar em seu primeiro disco. E creditando-se apenas como Colin ("cabelo escuro"), Robert Gotobed (6'3"), B. C. Gilbert ("olhos azuis") e Lewis ("9 st. 6 lbs."), o grupo dava início ao mais espetacular disco de estréia da história do punk rock.

Pink Flag abre com Reuters, batizada após a mais tradicional agência de notícias do mundo. A introdução consiste do baixo e da guitarra repetindo notas que ecoam no horizonte, como ondas de rádio. À entrada da bateria, toda banda responde ao mesmo acorde, contando quatro compassos para Colin Newman entrar berrando, ainda que cético. "Nosso correspondente lamenta informar/ Um tempo difícil, em que tudo vai mal/ Movimentos nas fronteiras/ Problemas nas colinas/ Pouca comida, crime em dobro/ Preços subiram desde que o governo caiu/ Acidentes aumentam enquanto o inimigo bombardeia/ O clima é nocivo, moscas e ratos florescem/ Mais cedo ou mais tarde o fim vai chegar". O punk é visto como uma guerra onde todos correm para não ser atingidos e lá está o Wire, observando tudo de fora. Até o final da canção: "Este é seu correspondente, a fita está acabando/ Aumentam os tiroteios", e toda banda ajuda com os gritos finais, "saques, incêndios, estupro". A música termina aos poucos, à medida que os gritos vão desaparecendo no horizonte. Um acorde final espera o relógio completar os dois minutos que compõem a música e a guerra se vai. Ou não?

"Eu quero ser", ruge Colin logo após o silêncio dominar, chamando toda a banda de volta, "um campo de treinamento para os domingos, assim eles podem foder com a minha vida/ Aborrecer minha esposa e deixar um gosto ruim/ Que a pasta de dentes listradas não pode tirar na manhã de segunda". A urgência do Wire pode ser sentida em todas suas microcanções, mas é Field Day for the Sundays quem inaugura a série. "Quero ser alvo para os diários/ Assim eles podem tirar fotos minhas com uma pessoa nua na página 3/ Tão vulgar/ Tocando à cintura/ Parecendo hesitante com são as manhãs de segunda". Não completamos os 28 segundos da canção e o grupo volta para um segundo final, repetindo apenas o último verso.

Entram os dois acordes que o Elastica usou para compor Connection. É Three Girl Rhumba, seguida da bateria mecânica e de um baixo escorregadio e quadrado. Ela inicia os jogos de palavras nas músicas de Pink Flag, misturando mágica de botequim com metafísica: "Pense num número/ Divida-o por dois/ Algo é nada/ Nada é nada/ Abra a caixa/ Rasgue a tampa/ Então pense num número/ Não pense numa resposta/ Abra os olhos/ Pense num número/ Não deixe passar/ Um número é um número". A faixa quebra a linearidade numa espécie de refrão: "Uma chance de encontro que você quer evitar/ Inevitável/ Então você faz/ Sim, faz/ O impossível". Voltando ao tema original, "você não tem um número/ Só quer dançar rumba/ E não há jeito de ficar por baixo". Sim, uma canção de amor. Sim, um minuto e quinze segundos.

Estão disposto então os três conceitos centrais da desconstrução artística proposta pelo Wire. Nas três canções, o grupo cria imagens em cada verso, mas não obriga-se a construir uma paisagem com estas (o que ocorre apenas - e durante todo o disco - em Reuters). As palavras são simples, as situações cotidianas, mas eles não estão atrás de respostas fáceis. Questionando a própria sociedade capitalista com sua lógica fragmentada, Pink Flag busca um ângulo que possa enxergar todos os alvos ao mesmo tempo e eliminá-los com a quantidade mínima de munição. Se o punk é uma reação a uma ordem de prisão, o Wire espera sentado dentro de casa, com uma armadilha mortal esperando em cada porta.

A variação de acordes, por exemplo, é, ao mesmo tempo, plural e limitada. Eles usam diferentes combinações dos três acordes básicos do punk no começo de cada faixa, deixando estas se desenvolverem sobre um único acorde, geralmente esticados ao máximo. E por máximo, entenda no máximo dois minutos - a velocidade e a eficácia das canções estão intimamente ligadas. Experimentando no estúdio formas de se explorar as inúmeras variantes do rock básico, eles podavam todo refrão repetido, toda possível entrada de solo, toda estrofe que não tivesse o que dizer.

Suas letras também não estavam interessadas em desvendar nada para o ouvinte. Para o grupo, este tinha que ter o mesmo trabalho - e portanto ter a mesma recompensa - que os músicos tiveram para compor as canções. Não que Pink Flag seja um disco difícil (musicalmente, ele lembra um disco dos Ramones se o referencial destes fosse o Velvet Underground e não Chuck Berry), mas atravessar suas letras não é tarefa para qualquer um. Three Girl Rhumba, por exemplo, é uma canção que fala da dificuldade de tirar uma garota para dançar. Só que ela é transformada num truque de mágica que te induz ao erro ao propor um número no título da canção - e, olha só, é a terceira música do disco. Assim, o grupo compara a margem de erro que você tem em ambas situações, que é sua própria passividade. Se você não for, você perde, não sai do lugar. Se você for, já ganhou.

Uma seqüência de acordes interrompida pela bateria abre a faixa seguinte. Ex-Lion Tamer (Ex-Domador de Leões) ironiza daqueles que sempre seguiram as regras do sistema, olhando com pesar as aposentadorias do Cavaleiro Solitário (o policial antigo, "o mais solitários de todos/ Sem balas de prata/ Tonto saiu de cena) e do Batman (o policial moderno, "sem o disfarce da justiça/ Robin deixou o ninho"). Ao refrão ("garrafas de leite vão ficando vazias/ Continue grudado em seu televisor") volta duas vezes, na segunda repetindo a última frase várias vezes, enquanto as guitarras vão construindo panéis de ruído por trás de tudo, até que Colin termina tudo com um grito.

Dois acordes bêbados caminham vagarosamente em Lowdown. "O tempo é curto/ Mas nunca o suficiente pra chegar à frente/ Projetar a imagem/ Que, se em tempo, tornaria-se um sonho concreto", o vocalista canta com igual despojo, "Outro cigarro, outro dia/ De A a B/ Novamente evitando C, D e E/ Porque com E é onde toca-se o blues". A brincadeira com as letras vem do fato da seqüência de acordes E, A e B (mi, lá e si) ser uma das básicas do blues. "Evitar a morte é ganhar o jogo/ Evitar renegação, o grande E". A banda sai dos dois acordes e cai no grande E (mi maior) e o vocalista canta o blues: "Afogando-se na grande piscina/ Surgindo à superfície/ O cheiro teu/ É um lowdown". Lowdown é uma expressão que pode tanto dizer "provas concretas", "informações confidenciais" e "repugnante", se usado como adjetivo. O grupo usa o significado ambíguo da palavra para deixar em aberto o que sente em relação ao cheiro da pessoa a quem se refere. Novamente, uma canção de amor: a monotonia dos primeiros acordes e versos refletem apenas a rotina insuportável de quem acabou de levar um fora. O refrão faz referência à depressão, comparando afogar-se com o blues. Nos dois últimos versos, o protagonista culpa sua ex-amada pelos maus bocados que vem passando. Antes do fim da música, Newman ajuda Gilbert nos golpes em sua guitarra, aumentando a violência lenta da canção, mais uma vez encerrada com uma frase gritada.

Start to Move injeta energia e velocidade com a entrada da bateria de Gotobed. Três acordes na introdução e durante o mesmo acorde repetitivo que preenche o volume para que a letra fale da futilidade do dia-a-dia: "Foi bom, mas carne apodrece logo/ Emoções: todos temos esportes". Brazil segue o ritmo com uma letra sobre a ignorância das massas frente a verdade dos fatos: "É verdade querida, te levarei pra casa/ Serei seu namorado para sempre/ Eu te amo, sempre amarei/ Até dividirem o átomo". Nosso país sempre foi visto pelos estrangeiros como uma utopia cega, em que todos se divertem sem a mínima noção da realidade. A faixa termina com uma indecisão ideológica repetida várias vezes para ganhar em ritmo, ao alternar as palavras "esquerda" e "direita", antes de terminar a faixa com um "salute!".

It's So Obvious canta a revolução nas ruas, só não ver quem não quer: "É tão óbvio, está aqui e está lá". Colin canta sobre os tempos que vive, espantado com o fato não estar claro para todos: "Estamos em 77, próximos do céu/ É preto e branco e rosa, pense". Quando ele fala da cor rosa, o título do disco se justifica. Se o punk gritava através de fanzines xerocados a revolução em preto e branco, o Wire explica sua existência. O rosa contrasta-se com as duas cores básicas - é o elemento artístico da revolução. Ao erguer a bandeira rosa na capa do disco, o Wire explica-se a que veio: eles são a arte no punk. "Há mais para vir", anunciam no meio da canção.

Surgeon's Girl novamente coloca o flerte (numa sala de espera de médico) como eixo central da trama, fazendo o protagonista pensar num caso de amor com uma pessoa que mal conhece: "Eu te vi numa revista grã-fina", repete o refrão, sobre o mesmo e insistente acorde. A faixa-título encerra o lado A do disco com uma visão aterradora de um campo de concentração atemporal. A letra faz referência ao aprisionamento indígena, à guerra fria e ao filme Fahrenheit 451, de François Truffaut, e termina aumentando o volume e a velocidade à medida que o vocal pergunta: "Quantos vivos ou mortos?" até atingir o máximo de ruído que quatro caras numa banda de rock podem fazer com apenas distorção de guitarras. O final - gritos abafados após rufares de tambor - é quase épico.

The Commercial reinicia o disco como a única instrumental de toda coleção (por isso mesmo, "a comercial"). Aqui, o grupo exercita seu entrosamento, deixando tanto baixo quanto bateria definirem momentos específicos da faixa. Straight Line critica a falta de maturidade masculina em relações amorosas: "Minha mente está a contragosto e sua carne é tão fraca/ Meus movimentos traem os segredos que penso?/ (...) Estou movendo numa linha reta?", pergunta em menos de um minuto de um riff de guitarra que aos poucos se transforma na própria seqüência de acordes. 106 Beats That (cuja seqüência de acordes foi ditada pelas letras de uma estação de trem por onde Graham Lewis passeava um dia) continua o questionamento sobre a sexualidade: "Com aplauso ele ascende/ Com mudança ele cresce/ Acha isso tão importante/ Odeia esperar/ Não estimula/ Gosta de celebração/ Não entende porque é tão engraçado/ O sexo". Mr. Suit encerra a seqüência de faixas velozes com o típico brado antissistema do punk - "Cansei de me dizerem o que pensar/ Cansei de me dizerem o que fazer/ Cansei de farsas/ Isso, cansei de você" -, grita, com o dedo em riste, na cara do Sr. Terno-e-Gravata do título.

Entra a mais bela seqüência do disco. Começando com Strange (regravada pelo R.E.M. no disco Documento no. 5), ela arrasta duas duplas de acordes como se exercitasse os instrumentos numa maratona. O vocal antevê algo acontecendo, uma surpresa iminente: "Há algo estranho acontecendo hoje à noite/ Algo que não está certo/ Joey está nervoso e as luzes são claras/ Algo está acontecendo e não está certo", o vocal de Colin soa ansioso e certo do que está falando, "Há algo que não havia antes/ Mantenha os olhos grudados no chão/ Ninguém irá salvar sua vida/ Há algo estranho acontecendo hoje à noite". A banda é cativada pela atmosfera de paranóia e apreensão que domina a letra da canção, ecoando gritos que aos poucos "desligam" a banda, na pequena jam session em seu último minuto.

Fragile é o mais belo momento do disco. Com menos de um minuto e meio e quatro acordes, o Wire canta sua mais perfeita balada. Canta seu próprio amor "fugaz, que queima quando chega/ Frágil/ Precisando de mãos preciosas/ Frágil" e sua sensibilidade à flor da pele, estampada no tecido da canção. Mannequin transfere estes valores para o pop com duas seqüências de três acordes perfeitas, backing vocals apaixonados e sua letra do contra, atirando desta vez contra a beleza fútil das modelos: "Você é um desperdício de espaço/ Sem graça natural/ Tão magra/ Que mal começa".

Different to Me começa a última parte do disco com o nervosismo que a questão central da letra passa: "Queria saber o que está acontecendo?". Champs usa da ironia para acertar o ponto fraco do esporte: o vazio da agressividade, o berço da violência: "Outro morto, não chore/ Você tem velocidade/ E pode sangrar/ Mas isso é na próxima vez". A balada Feeling Called Love questiona o amor e, na dúvida, pede para ser amado. 12XU (o X funcionando como autocensura proposital, entrando no lugar de um certeiro "fuck") cospe em direção a uma ex, vista "em uma revista/ beijando um cara". "One, two/ Ex You!" grita o grupo contra quem possa se achar ofendido. É o fim do disco (não antes sem entrar o baixo melódico e um mesmo acorde de guitarra que conduzem Options R, a única inédita do CD).

Em pouco mais de meia hora, o Wire convence seus ouvintes que é possível ser agressivo e inteligente ao mesmo tempo, sem perda de intensidade para nenhum dos lados. A equação desenhada pelo grupo - muito o que dizer no menor tempo possível - renderia ainda dois bons discos, Chairs Missing e 154, mas sem o brilho genial de Pink Flag, talvez o disco que melhor resume o punk rock. E tudo que viria depois dele.

4:25 AM

 
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